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Crítica | Não Me Abandone Jamais


Não me Abandone Jamais se beneficia enormemente do público evitar ler sinopses, comentários e críticas a respeito antes de lhe assistir; ou seja, é o caso em que o filme deve ser visto às cegas, mantendo o mistério e a curiosidade aguçada a todo o momento. Pois, o trabalho de construção do universo diegético do triângulo amoroso realizado pelo diretor Mark Romanek e sua equipe estabelecem-se em torno de um conceito e um pano de fundo que, caso revelado, poderiam impactar diretamente não apenas no resultado final do filme (é de praxe e inevitável que espectadores fabricam expectativas) mas, especialmente, no acesso à produção. Ora, assistir Uma Mente Brilhante sabendo da doença de John Nash ou O Sexto Sentido e conhecer o destino do Dr. Malcolm Crowe abalaria totalmente a experiência. Por isso, previno que, a partir desse momento, é imprescindível que eu aborde detalhes da narrativa e estrague a surpresa. Logo: pare de ler, assista ao filme e volte aqui, ok? Última chance.

Durante os primeiros 15-25 minutos, o roteiro instiga em descobrir a verdade acerca dos Doadores e Assistentes e o porquê dos estudantes “especiais” da escola de Hailsham passarem seus dias encarcerados, sem sequer poderem ir atrás de uma bola que caiu fora dos domínios da instituição. Os letreiros inicias dão a dica de um avanço da medicina na década de 60, mas afora isto, somos jogados em uma Inglaterra incomum, onde os jovens estudantes trajam pulseiras magnéticas, tomam remédios pela manhã e aparentemente, tem uma vida pré-determinada. Somente depois da confissão de uma das professoras que, subjugada pelo peso da culpa, revela a verdadeira natureza daquela instituição, descobrimos que Possíveis e Original só poderiam ser conceitos advindos da clonagem.

Hailsham é uma fazenda de clones sadios para desenvolvimento dos jovens e posterior doação de seus órgãos a Possíveis receptores. Assistentes, por sua vez, são clones que, prolongando sua expectativa de vida, auxiliam os Doadores durante o processo psicológico da doação. Independentemente desta prática que, naturalmente, lança luz a uma dezena de conflitos éticos, o roteiro de Alex Garland, baseado no livro de Kazuo Ishiguro (que se tornou leitura obrigatória), realiza uma escolha fundamental para o sucesso do filme: ignorar adentrar em detalhes da clonagem, usando-a apenas como pano de fundo para uma poética história de romance, amizade e vida. Assim, quando Miss Emily (Charlotte Rampling) menciona apenas que “a população estava com medo e parou de fazer questionamentos”, entendemos o egoísmo dos beneficiários dos órgãos e como isto fechou seus olhos para a real existência da alma e do desejo de viver dos clones.

Estabelecido em três períodos, ao longo das décadas de 60 a 80, o roteiro acompanha o relacionamento de Kathy (Carey Mulligan), Tommy (Andrew Garfield) e Ruth (Keira Knightley), desde a infância até a plena maturidade. Criando personagens fortes e interessantes à sua própria maneira, eles são reflexos de um mundo que não cessa de aliená-los, através de um ensino impróprio ou de programas televisivos denunciando a aura falsa e irreal de suas existências. Trágicos por natureza, porque eventualmente morrerão depois da terceira doação, Kathy, Tommy e Ruth aceitam o determinismo da morte prematura, escondendo o medo e a angústia em uma camada fina da personalidade e de suas decisões; neste contexto, a chance de provarem que estão apaixonados para terem uma sobrevida maior surge como uma válvula de escape natural, e também uma chance de vivenciarem a condição humana plenamente.

Poético, o argumento é trabalhado pelo diretor Mark Romanek com enorme sensibilidade, investindo em um ritmo narrativo calmo e na emblemática fotografia de Adam Kimmel, que revela um olhar formidável para belos enquadramentos, como na praia ou nos establishing shots da escola de Hailsham. E quão lindo o plano através do qual acompanhamos a visita de Kathy a Tommy em um quarto de hospital banhado em cores azuis deprimentes, e que ao acompanhar em seguida os jovens caminhando em direção à saída, muda a paleta de cores para tons de dourados e uma iluminação quente que inabalavelmente remete ao fim da vida.

Toda a atenção de detalhes também merece aplausos, seja em uma das professores que parece sempre evitar tocar seus alunos ou a cicatriz que Tommy carrega das cirurgias e a marca do furo da agulha do soro nas mãos. Ou o plano trêmulo que, ao revelar o beijo de dois jovens, é a consequência natural para uma pessoa que acabou de perder aquele que era seu chão. Finalmente, os ataques de raiva de Tommy surgem, talvez, como a rima mais bela de toda a narrativa embalando com um poder enorme a frustração do jovem de não ter sido escolhido naqueles momentos tão importantes e decisivos da sua vida.

Não me Abandone Jamais é uma poesia recheada de uma beleza trágica. Um romance transcendental que deixa os dilemas éticos a cargo do espectador e, apesar de menor, deixa um gosto doce, porém amargo na boca.

Avaliação: 4 estrelas em 5.

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2 comentários em “Crítica | Não Me Abandone Jamais”

  1. Eu simplesmente me apaixonei por esse filme, com certeza é um dos meus favoritos que quero comprar pra fazer parte de minha videoteca!

    Excelente crítica, como sempre! 🙂

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