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Sugestões: Incêndios

Incêndios (Incendies), Canadá/França, 2009. Direção: Denis Villeneuve. Roteiro: Denis Villeneuve, baseado na peça de Wadji Mouawad. Elenco: Lubna Azabal, Mélissa Désormeaux-Poulin, Maxim Gaudette, Rémy Girard. Duração: 130 minutos.

Cumprir os últimos desejos de sua mãe, Nawal, não se resume somente a uma viagem de descoberta da história de uma mulher que sofreu o pior lado de um regime preconceituoso patriarcalista e os conflitos religiosos de cristãos e muçulmanos no Oriente Médio, é também uma jornada de auto-conhecimento dos gêmeos Jeanne e Simon que, não obstante as cinzas que envolvem tragédias e as camadas de véu que escondem segredos, batalham obstinadamente na entrega de duas cartas: uma ao pai que não conheceram, a outra ao irmão cuja existência desconheciam. Não parece uma missão fácil, porém, àqueles jovens consumidos pelo luto e pelo despertar de uma nova vida. Auxiliados pelo bondoso tabelião, Jean Lebel, os  gêmeos vivenciarão na investigação do passado de Nawal e busca do pai e irmão perdidos, experiências díspares e determinantes na construção dos seus caráteres, sinônimos de uma promessa a ser cumprida.

A narrativa de Incêndios indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011 é uma aventura cruel, impiedosa, dura e implacável cujas consequências, nenhuma delas violentas na acepção primária da palavra, provocam cicatrizes profundas, mas feridas de alma que apenas a maturidade e amor dos gêmeos protagonistas conseguirá superar. O título faz referência ao, ironicamente, momento mais belo da narrativa: fundamentalistas cristãos incendeiam um ônibus de muçulmanos, onde a cristã Nawal disfarçara-se de lenço na cabeça e cruz no bolso; atordoada, quase sem reação, Nawal joga-se no canto mais inferior da tela enquanto as chamas consomem as paisagens desérticas do Oriente Médio, transformando definitivamente a sua vida, sob o olhar do diretor de fotografia André Turpin.

Afora as interpretações que, merecem um parágrafo a parte, a fotografia de Incêndios é impressionante. Construindo elegantes contrastes da pobreza e destruição provocadas pelas inúmeras guerras internas, o trabalho de Turpin é evocativo ora em ilustrar a beleza e tranquilidade de grandes paisagens ora nas pobres habitações que, similares as nossas favelas, aparecem manchadas do negrume característico de um incêndio. O desconforto é maior se imaginarmos o aspecto pacato na região onde Nawal testemunhou a morte de seu amante e deixou o seu filho recém-nascido à adoção debaixo de uma promessa que jamais cumpriria, as primeiras agressões à vida daquela mulher que a acompanhariam para sempre.

Outro aspecto da narrativa dirigida e adaptada por Denis Villeneuve é a fragmentariedade, exigindo enorme comprometimento do público, apesar do necessário didatismo dos letreiros em vermelho sangue antes de um novo capítulo da jornada. Assim, alternando entre flashbacks e o tempo atual, o filme talvez pareça absurdo e improvável em sua revelação final, mas a sensibilidade de Denis e a maneira com que engana os seus protagonistas é de grande genialidade. Vez que, desde o princípio, sabemos que não são eles os filhos frutos do amor, e apenas é uma questão de tempo até que eles descubram a verdade. Logo, quando uma enfermeira revela acerca de não um, mas dois filhos, o sentimento do espectador é da frustração por saber a verdade e não ter os meios de contar a Jeanne e Simon da pancada que o destino preparou.

Mas, é a atuação da família Marwan que impressiona. Os gêmeos, Jeanne, uma matemática que compara a busca dos entes perdidos quase como um problema sem solução, e Simon, carregando uma amargura do provável descaso na sua infância que culmina na contrariedade à demanda da mãe, ganham vida respectivamente pelos ótimos Mélissa Désormeaux-Poulin e Maxim Gaudette. E quão o desespero contido na voz de Simon ao questionar a irmã se 1 mais 1 pode ser 1?. Por sua vez, Lubna Azabal transforma Nawal em um produto do meio: desterrada da sua família por tê-la injuriado, incapaz de encontrar seu filho, envolvida em crimes políticos e, eventualmente, presa e torturada, as expressivas marcas nos seus olhos expõem de forma minimalista quem aquela mulher é. Além disso, descobrir a verdade surge como uma experiência catatônica de vida e morte, natural diante do volume de informações absorvidas.

Não se enganem, Incêndios esconde na triste realidade do mundo, a poesia da paz adquirida unicamente em consequência da verdade. Depois do que os Marwan sofreram por amor e em nome de uma promessa, parece ser uma epifania digna e honrosa àquelas pessoas.

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5 comentários em “Sugestões: Incêndios”

  1. Sério que você gosta tanto do filme assim?

    Incêndios tem sérios problemas narrativos, como narrar um evento apenas para mostrá-lo na íntegra em seguida (erro de montagem) ou investir em coincidências absurdas para que sua trama funcione (falha de roteiro). Isso, é claro, além, de apelar sem dó pro dramalhão. 3/5

  2. João,

    Eu concordo no aspecto montagem, especialmente nos 10 minutos finais que o voice over parece querer narrar aquilo que nós vemos. É um defeito, porém entendi o objetivo de Denis Villeneuve – ele queria que fosse Nawal quem revelasse a verdade, e sua voz, ao invés de apenas a escrita foi a forma que ele achou para isso. Falha? Sim! Mas eu perdoo.

    Quanto ao outro aspecto, eu discordo: coincidências absurdas devem ser analisados sob um prisma as vezes subjetivo, e Oldboy sustenta-se diante de todos esses aspectos. Claro que como eu frisei, o filme tem sua parcela de absurdo e improvável, mas assim como naquele exemplar coreano eu aceitei pessoalmente as revelações, pois me aproximei demais dos personagens.

    Enfim, adoro conversar de cinema por isso, e fiquei interessado em ler uma crítica sua deste filme.

    Antônio,

    Provavelmente não uma obra prima, porém um destaque enorme dos lançamentos de 2011.

  3. Então, Márcio, a questão não é só a narração em off. Tem um momento em que a protagonista narra uma longa história apenas para acompanharmos o mesmo acontecimento na íntegra logo em seguida.

    E quanto às coincidências, o universo diegético de Oldboy é completamente diferente, reside mais no psicológico, o filme busca o tempo todo estabelecer-se em um mundo onírico, de fantasia, auto-referencial muitas vezes. Já Incêndios se propõe a ser um drama calcado na realidade, e claramente usa suas "revelações" finais como um artifício barato para nos surpreender e arrancar nossas lágrimas.

    Mas não desgosto do filme. Como disse, daria 3 estrelas. Mas provavelmente não escreverei sobre ele.

    Um abraço!

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