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Os Incompreendidos

Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, França, 1959). Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Marcel Moussy. Elenco: Jean-Pierre Léaud, Claire Maurier, Albert Rémy, Guy Decomble, Georges Flamant, Patrick Auffay, Daniel Coutourier, Jeanne Moreau. Duração: 99 minutos.
Antoine é um pré-adolescente parisiense desprezado pela mãe biológica, negligenciado pelo apático padrasto e apresentando rendimento escolar abaixo das expectativas de seu autoritário professor. Sua rotina inclui as escapadas regulares das aulas para ir ao cinema ou fliperama acompanhado do melhor amigo René, o comentimento de pequenos delitos (furtos), a fuga de casa certa noite e as mentiras contadas ingenuamente com desconhecimento de suas verdadeiras consequências. O seu comportamento, no entanto, é o reflexo de um inocente jovem sôfrego pelo carinho e atenção dos pais. Ele não é um rebelde ou problemático; é um garoto com dúvidas e frustrações, não tão diferente de outros da mesma idade, fascinado pelas infinitas possibilidades e aventuras que Paris lhe oferece, e dotado de fôlego para vivê-las intensamente. Em linhas gerais, esta é a história de Os Incompreendidos, um dos filmes inaugurais da nouvelle vague … e também um fiel recorte da juventude de seu diretor François Truffaut.


Dedicado à memória de André Bazin, mestre e figura paterna de Truffaut, o retrato autobiográfico do cineasta é o seu primeiro longa metragem (seus esforços anteriores resumiam-se a curtas metragens) e nos apresenta a Antoine Doinel (Léaud), o seu alter-ego que retornaria em filmes posteriores como Beijos Proibidos, O Amor em Fuga. Enxergando na adolescência o importante, breve e decisivo estágio de formação e desenvolvimento do caráter e personalidade de um homem adulto, Truffaut não ignora as menores frivalidades do dia-a-dia de Antoine e confere relevância inclusive as brincadeiras na sala de aula, seguidamente repreendidas com severidade pelo professor (Decomble). Contextualizando a ordinária trajetória daquele jovem, Truffaut convidar a recordar as memórias de nossa infância, a facilidade com que igualmente amávamos, odiávamos e perdoávamos, a teimosia e a temperança das nossas ações. Ele evita idealizações da adolescência – conhecendo a sua história de vida, ele não tinha motivos para fazê-lo -, mas não a torna demasiadamente pungente e excruciante desvirtuando-a.

O equilíbrio provém das ambições do cineasta e de seu comprometimento com os valores defendidos na nova onda da produção cinematográfica francesa. O naturalismo, assim, confere realismo e distinta peculiaridade à história de Doinel. As pistas são deixadas sem maiores alardes, e o questionamento quanto à procedência de uma caneta nos previne e alerta para o comportamento delituoso de Antoine, rechaçado pelo jovem satisfazendo, assim, o imediatismo das expectativas do padrasto (Rémy). Em outros casos, a penumbra da descrença e do desprezo reveste o comportamento dos personagens, e o relance de sua mãe (Maurier) na rua com um acompanhante jamais é mencionado por Antoine (muitos frustrariam-se aguardando um clímax). Da mesma maneira, a áspera discussão dos pais entreouvida por Antoine no seu quarto sedimenta a consciência do jovem em relação ao que seus respnsáveis pensam, prescindindo de conflitos posteriores para demonstrar suas consequências óbvias.

Recheado de comentários cômico-sarcásticos, a promessa de vingança de Antoine contra o professor ou o desabafo deste ao constatar a irresponsabilidade e desinteresse dos alunos (“Pobre França! Que futuro as espera”) funcionam como sinais da rebeldia adolescente e provam a inabilidade da maioria dos docentes de compreender as nuances de uma fase da vida de descobertas e ineditismo. Por sua vez, a puerilidade está presente e as frustradas tentativas de honrar um acordo com a mãe o levam a visitar a obra de Honoré de Balzac e a acender uma vela ao autor, causando uma pequena (e divertida) catástrofe. Esses momentos contrastam com outros mais duros, como na decisão dos pais de enviar o garoto ao internato infantil, lavando as mãos da responsabilidade com o rasteiro argumento “Criança gosta de criança”, ou a inconcebível ação que dá início ao terceiro ato descoberto em um única lágrima silenciosamente derramada. Fluentemente trabalhando com extremos, Truffaut demonstra sensibilidade na tradução do pensamento infanto-juvenil e no questionamento da natureza humana, características perenes na sua filmografia.

Tecnicamente, o embrião da nouvelle vague manifesta-se na fotografia de Henri Decae que prestigia as tomadas abertas (o plano plongé da aula de educação física na qual, dois a dois, os garotos começam a se dispersar nas ruas de Paris é marcante), e nem a parca iluminação representa obstáculo à história contada. Enquanto isso, a montagem de Marie-Josèphe Yoyotte expõe o tom episódico e aventuresco da adolescência nos fades que encerram situações específicas na vida de Antoine, mantendo, porém as longas tomadas e poucos cortes uma frequente na abordagem.

Encabeçado pelo ótimo jovem ator Jean-Pierre Léaud, cuja expressão séria e embrutecida fortalecem o aspecto comovente e trágico na trajetória de Antoine, Os Incompreendidos, um título que afugenta a sutileza idiomática do título original significando “infernizar”, resume a sua proposta autobiográfica no depoimento a uma psicóloga que funciona como um corajoso desabafo de Truffaut aos espectadores. Mas, são as inconcebíveis imagens de crianças detrás das grades de um reformatório e o enigmático plano final de Antoine correndo em direção ao mar tranquilo (ele nunca o havia visto), na agridoce, porém solitária liberdade, acompanhado de um close final revelador que transformam esse na primeira obra-prima da carreira de Truffaut.

Esse é o close de um jovem que eventualmente encontraria no cinema o convite para fugir de uma vida de delinquência e, como retribuição, amou essa arte incondicionalmente, confundindo-se com a sua história. Todavia, esse jovem não é mais Antoine Doinel, e sim, seu criador, François Truffaut.

* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na quarta, 25 de janeiro, com Atirem no Pianista (1960).

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3 comentários em “Os Incompreendidos”

  1. Olá, eu sou a louca do Filmow que te mandou dois recados seguidos… rs
    Como eu disse lá, adorei o seu blog. Você escreve muito bem.
    Hora ou outra estarei sempre por aqui, anotando as dicas.
    Me mate, mas não conhecia François :s
    Ainda preciso aprender muuuuuito sobre o fantástico mundo do cinema… Mas devagarinho eu chego lá.
    Abraços.
    Camila Leite

    @sonhospontinhos
    http://www.sonhosentrepontinhos.com

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