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A Noite Americana

A Noite Americana (La Nuit Américaine, França/Itália, 1973). Direção: François Truffaut. Roteiro: Jean-Louis Richard, Suzanne Schiffman e François Truffaut. Elenco: Jacqueline Bisset, Valentina Cortese, Dani, Alexandre Stewart, Jean-Pierre Aumont, Jean Champion, Jean-Pierre Léaud, Nike Arrighi, Nathalie Baye, David Markham. Duração: 115 minutos.
Na primeira cena de A Noite Americana, acompanhamos o movimentado cotidiano de uma praça no centro de Nice, algumas pessoas caminham em direção ao metrô, outras cuidam de seus afazeres e quitandas; um carro conversível vermelho circunda a via, desaparecendo rapidamente do quadro para revelar o retesado encontro de dois homens que culmina no esbofeteamento de um pelo outro; “Corta!” grita a plenos pulmões Ferrand (Truffaut), momento no qual descobrimos estar diante do processo cinematográfico de construção e transformação das palavras datilografadas e, naturalmente, rasuradas e rabiscadas por quem tocou no roteiro, em imagens, sensações e sentimentos que só o cinema poderia proporcionar. Escapamos do domínio do real e adentramos no mundo do faz de conta, da cinemografia, da escolha da fotografia e melhor iluminação, dos mais variados ângulos e enquadramentos e das mais diversas (e as vezes fúteis e simplórias) tomadas de decisões narrativas. Durante quase 2 horas, o diretor François Truffaut nos convida a viver o processo cinematográfico – pelo menos, a produção e alguns aspectos de pós-produção – e elabora, por mais piegas que soe, uma das declarações de amor mais belas já produzidas de um homem a sua arte.
Não à toa, o filme tem o nome de uma técnica na qual cenas noturnas são filmadas de dia usando filtros especiais; ela resume facilmente o processo de ficcionalização e a liberdade do cinema de contar as mais variadas e extraordinárias histórias. A “noite americana” (ou day for night) escancara o jogo de aparências muito mais sutilmente que efeitos especiais rebuscados, redigindo os termos do contrato firmado entre espectadores e a equipe de produção quando aqueles aceitam submeter-se, ou melhor, serem enganados pelas “magias” e “ilusões” da sétima arte. Nesse sentido, Truffaut revela as cordas e os marionetes que opera, e sugere detidamente diversos aspectos da magia de transformação daqueles seres inanimados em criaturas que aprendemos a amar, odiar, chorar, sorrir. Ele, contudo, o faz com uma deferência quase religiosa que, ao invés de surgir como esforço exclusivamente técnico de metalinguagem ou frustrar justamente pela artificialidade que parece acompanhá-lo, desenvolve coração próprio, acobertando o fino pano translúcido que guarda a verdade e crueza do processo.
Assim, somos transportados às gravações do filme dentro do filme “Je vous présente Paméla” nos estágios iniciais, quando descobrimos que Ferrand terá que bolar uma forma de conseguir concluir tudo no prazo recorde de 7 semanas (ou 35 dias), para liberar os atores para outros compromissos. Inevitavelmente, dúvidas brotam na cabeça do controlado diretor, questionamentos a respeito da qualidade do trabalho desenvolvido e recorrente pesadelos o assolam. Ele, todavia, deve-se manter frio, pois na imagem dos demais, ele é o líder do projeto (“o diretor deve ser capaz de responder a todas as perguntas”, nos diz certo momento), embora estejamos falando de um esforço coletivo de dezenas de ofícios e talentos. Essa multidisciplinaridade provém dos dramas íntimos desde de uma estagiária e do contra-regra a uma estrela de cinema, e Truffaut humildemente põe-se abaixo dos outros no exclusivo comprometimento de Ferrand com o trabalho – “nós somos felizes apenas no cinema” – sequer dando-se o luxo de desenvolver um arco pessoal afora a intransigente necessidade de fazer arte. E o momento de maior felicidade do diretor é justamente ao receber uma encomenda de livros sobre ícones como Luís Buñuel, Ingmar Bergman, Alfred Hitchcock, e outros.

Formando uma verdadeira família com os integrantes da equipe, na iminência de ser interrompida no término das filmagens – e o agridoce discurso de despedida de Severine (Cortese) ressalta com rara felicidade -, Truffaut desnuda a personalidade de seus personagens que, aos poucos, sensivelmente confundem-se com os dos personagens do filme dentro do filme. Assim, a insegurança emocional e infantilidade de Alphonse (Léaud, ator-fetiche de Truffaut), sobretudo no relacionamento possessivo e ciumento com Liliane (Dani), refletem no destino de seu personagem dentro do contexto de “Je vous présente Paméla”. Igualmente, a preocupação em torno da possibilidade de um colapso nervoso da atriz Julie Baker (Bisset) remonta ao seu trágico destino automobilístico e, a afeição a homens mais velhos encontra eco na personalidade de Paméla. Portanto, brilhantemente, Truffaut desenvolve dois filmes absolutamente diferentes, reaproveitando comportamentos, motivações e caracteres comuns a ponto de preencher as lacunas dos personagens. 

Contrariamente a muitos outros filmes sobre o processo cinematográfico, interessados em desmascarar o cinismo existente na indústria (me recordo imediatamente de O Jogador de Robert Altman), A Noite Americana tem uma visão romântica e, por vezes, cega. Tome como exemplo o produtor executivo Bertrand (Champion) e a sua postura compreensiva, afugentando entrevistas com a imprensa (“O produtor não deve se expor”) e auxiliando a produção no que lhe couber: a recuperação de negativos junto a um laboratório e a notícia da morte de um colega. Similar a ele, os demais integrantes da equipe parecem falar sempre a mesma língua, buscando no diálogo e na persuasão convergir. A descoberta da gravidez de uma atriz ou a alcoolemia de Severine, que prejudica irremediavelmente o andamento das gravações, denotam imprevistos pontuais rapidamente contornados pela equipe. Nem mesmo disputas de vaidade atrapalham decisivamente o cronograma estabelecido, restringindo-se ao sorriso amarelo e consternado de Alphonse ao descobrir que o camarim de Julie é maior que o seu ou o choque de Severine quando confrontada com sua idade na despretensiosa conversa com Alexandre (Aumont). Nessa sentido, as fotos em preto e branco de tempos áureos e célebres a perseguem inclusive no camarim funcionando como contra-peso adequado ao estado emocional da mulher.
Porém, A Noite Americana é um autêntico filme de metalinguagem. Tomadas sucessivas em diversos ângulos são essenciais durante o bofetão na abertura, bem como as intervenções de Ferrand ajustando o posicionamento do rosto e mãos de Julie ou a maneira com que Alphonse empunhará uma pistola. Aspectos da cenografia (a montagem de sets), direção de arte (um vaso quebrado é o adereço restante), operação de câmeras e gruas (as duas espécies de tomadas externas nos automóveis), a direção de atores e figurantes ou a fotografia e iluminação (o truque da vela para ter a luminosidade necessária no rosto do ator), todos são importantes e exigem a atenção de Ferrand porque fazem parte do universo diegético narrativo. Até mesmo a pistola mais adequada para a “pequena mão de Alphonse”, uma peruca e a cor do carro merecem atenção da direção. Nada passa desapercebido ou surge inexplicavelmente no resultado final sem que tenha sido remoído na mente criativa da equipe.

Apresenta uma dúzia de personagens excêntricos e humanos, Valentina Cortese (indicada ao Oscar) é quem mais se destaca na frágil pele de uma atriz de meia idade encarando a escassez de papéis causado pela sua idade. Por outro lado, Jean-Pierre Aumont, contemporâneo de Valentina, mantém-se o galã dos tempos de outrora, extremamente cortês e aprazível com todos os membros da produção. Logo, é um elemento de consternação que ele não possa revelar sua homossexualidade e deva esconder seu amante debaixo da ilusão de ser um jovem para carregar seu nome adiante. E, se Jean-Pierre Léaud revive os tempos de Antoine Doinel, na fala pouco cadenciada e insegurança, Jacqueline Bisset é um colírio para os olhos, na beleza perfeccionista que dissimula uma mulher fraca, mas extremamente disposta a se sacrificar pela continuidade da produção (e o método de atuação, gravando e escutando seus diálogos, demonstra o zelo que ela possui pelo ofício).

Entre curiosidades da história do cinema, tais como o método numérico sugerido por Severine usado com um tal de Federico (óbvio que Fellini), ou críticas pontuais a elementos estranhos da produção, a imprensa consegue apenas elaborar perguntas óbvias e banais, François Truffaut permite-se um pouco de auto-indulgência relembrando momentos passados de sua carreira dispersos na narrativa para deleite dos seus fãs: começa no nome de Alphonse, filho de Antoine e Christine em Domicílio Conjugal,  ao trecho da música que o compositor Georges Delerua toca no telefone extraído de As Duas Inglesas e o Amor ou o garoto furtando imagens de Cidadão Kane – inevitável recordação da juventude do cineasta vista em Os Incompreendidos.
Tecnicamente irrepreensível na doce e saudosa trilha sonora de Georges Delerue e na montagem de Yann Dedet e Martine Barraquet – os flashes das câmeras dos paparazzi contaminam a produção antes mesmo da chegada de Julie -, A Noite Americana muitas vezes é reduzido a uma obra de arte feita por quem e para quem ama cinema; vai além, é para amantes de qualquer manifestação artística e simplesmente interessado em uma boa história com personagens tridimensionais ambientados no universo apaixonante do cinema.
Um turbilhão de eventos e caos que, pedaço por pedaço, forma um todo coerente de emoções: a arte.

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4 comentários em “A Noite Americana”

  1. Excelente obra de Truffaut. Pessoalmente, considero-o a expressão máxima da metalinguagem em seu melhor estilo, em sua plenitude! É realmente uma grande obra dedicada aos amantes do cinema. Excelente sua crítica! Parabéns!

  2. Essa é uma de suas melhores resenhas, Marcio, com certeza. De forma apaixonada, você consegue expor muito bem suas sensações em relação ao filme, sustentada em argumentos extremamente consistentes. Admito, fiquei ainda mais instigado à conferir A Noite Americana. Pois é, eu não assisti até hoje. Porém, vou correr atrás logo e ir atrás dessa obra tão bem falada!

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