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Domicílio Conjugal

Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, França/Itália, 1970). Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut, Claude de Givray e Bernard Revon. Elenco: Jean-Pierre Léaud, Claude Jade, Hiroko Berghauer, Barbara Laage, Danièle Girard, Daniel Ceccaldi, Claire Duhamel, Daniel Boulanger e Silvana Blasi. Duração: 100 minutos.
Continuação de Beijos Proibidos, François Truffaut regressa à vida do seu alter-ego narrativo Antoine Doinel (Léaud) contando a história cotidiana dos primeiros anos de casamento com Christine (Jade), a convivência com os demais vizinhos no bairro residencial onde habita, o nascimento do filho Alphonse e a inquietante rotina que o leva a buscar emoção no proibido romance extraconjugal com a japonesa Kyoko (Berghauer). Estamos de novo no terreno mais fértil dos filmes de Truffaut: a abordagem detida e realista da vida dos personagens por meio da monotonia de um olhar burguês, na qual a maioria dos dias são equivalentes aos demais e a sensação de uniformidade somente é superada pelos escassos relevos de eventos fora do normal da habitualidade diária. A meu ver, essa é a crítica mais predominante na obra de Truffaut, desejando talvez agitar ou ao menos menear a inerte sociedade francesa, incitando uma revolução social, e quem sabe, a reforma dos padrões e conceitos confortavelmente estabelecidos.

O que explica o porquê as narrativas de Truffaut permanecem oportunas hodiernamente: mantemos os mesmos vícios enxergados pelo cineasta há 40 anos. Assim como os moradores vizinhos do condomínio onde mora Antoine, a sociedade preocupa-se sobejamente com o sucesso e o fracasso dos projetos dos outros. Conhecer seus pares revela-se o vício anfêmero que consome nossos sonhos e esperanças, o que explica a mórbida e incessante curiosidade pelo misterioso novo morador, e a revelação de que ele é uma celebridade afasta totalmente a desconfiança e aguça a indiscrição dos outros vizinhos. As amizades desenvolvidas, embora inquestionavelmente valiosas, sugerem a predileção da estereotipagem: a vizinha incestuosa, o senhor solitário e caseiro, o cartunesco casal vizinho. Por que Antoine e Christine seriam diferentes? Deitados à cama lendo seus livros, praticando sexo cada vez menos regularmente e abraçando a rotina de visitas e jantares pouco interessantes, o nascimento de Alphonse, apresentado no belo raccord da montagem de Agnès Guillemot, sacode o casamento, não poderia ser diferente, mas gradualmente se transforma na nova rotina do casal.

Mesmo sem disfarçar o desânimo da inevitabilidade de nossa existência, alimentado pelos dogmas e obrigações da sociedade, Truffaut evitar municiar a história de dramaticidade excessiva, privilegiando o reencontro de nossas memórias e o agradável sentimento de reviver momentos felizes gravados no passado. Nesse sentido, a direção é habilidosa em estabelecer rimas ao revisitar a adega do primeiro beijo de Antoine e Christine – dessa vez com uma inversão de valores – ou a amizade sugerida com um funcionário da empresa de reparo de televisões S.O.S. – Antoine havia sido funcionário da mesma empresa -, o que sugere um vínculo recorrente às lembranças do nosso passado, no caso, de Beijos Proibidos. Mas, muito além de apenas uma continuação, Domicílio Conjugal investiga a maturidade de Antoine, acentuada pelo nascimento dos primeiros cabelos brancos e pela voz mais pausada e ponderada que a dos episódios anteriores. Continuando a enfatizar a insegurança característica de seu protagonista – expandindo-se ao campo pessoal com mais intensidade do que no profissional -, Truffaut reflete o francês comum na imagem de um homem avesso a regras e, inconscientemente, atraído por elas. Um burguês trajando o uniforme dos revolucionários, sem enxergar a repetição dos erros dos seus pais (basta recordar a infidelidade de sua mãe em Os Incompreendidos).

Reflexo presente no uso abundante e apaixonado de espelhos enriquecendo a bem elaborada mise-en-scène como na discussão no plano de fundo durante uma conversa despretensiosa de Antoine ou a imposição de uma multa vista discretamente no pórtico da vila. A simultaneidade das ações escancara a banalidade dos problemas domiciliares de Antoine – todos têm seus problemas para lidar -, os quais são definitivamente sedimentados no irônico plano final nas escadeiras do condomínio, durante a repetição de um incidente envolvendo o casaco e a bolsa de sua mulher. O que, por sua vez, não diminui o afeto existente nas confissões de Antoine e Christine a pessoas diferentes, e que na montagem de Guillemot, parece estar dirigindo as doces palavras uns para outros, complementando e preenchendo os vazios estéticos (a lógica plano e contra-plano), narrativos e intrínsecos aos personagens.

Reacendendo sua admiração ao cinema de Alfred Hitchcock na sibilina dúvida dos vizinhos acerca da identidade do morador e, especialmente, na revelação de uma mulher trajando vestes japonesas (não há como não pensar na revelação de Norman Bates nos trajes de mulher em Psicose), Truffaut com maestria e naturalidade encontrou na trivialidade do homem-comum a pista para investigar o mistério da morte prematura de cada um de nós, vítimas da monotonia diária e da não-realização das grandes expectativas que traçamos (no caso, o livro escrito por Antoine). Felizmente, ele também revela que há uma salvação existente entre a sensibilidade da reconciliação e otimismo de um novo dia.

* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na quarta, 15 de fevereiro, com As Duas Inglesas e o Amor (1972).

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5 comentários em “Domicílio Conjugal”

  1. Me interessei muito pelo filme, principalmente por ser continuação de Beijos Proibidos. Aliás, muito interessante a relação que você faz com outras obras da saga do personagem. E fiquei mais instigado ainda pelas aparentes referências ao mestre Hitchcock!

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