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Fahrenheit 451

Fahrenheit 451 (Idem, Reino Unido, 1966). Direção: François Truffaut. Roteiro: Jean-Louis Richard e Fançois Truffaut, baseado no livro de Ray Bradbury. Elenco: Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack, Anton Diffring, Jeremy Spenser, Bee Duffell e Alex Scott.


por João Marcos Flores

De certa maneira, podemos dizer que os anos 60 foram a década da desinformação. Enquanto os países socialistas aumentavam as barreiras que os isolavam do restante do mundo (a partir da construção do muro de Berlim em 1961), as nações capitalistas assistiam à consolidação fulminante da televisão como grande influenciadora da opinião pública ao redor do globo, afastando as multidões das salas de cinema e teatro e, é claro, diminuindo drasticamente seu interesse pelo hábito da leitura. No Brasil e em diversos países do chamado Terceiro Mundo, regimes ditatoriais se beneficiavam do próprio poder para sufocar a oposição e calar qualquer tipo de movimento social através da força e da violência, censurando mídia e manifestações artísticas justamente por saber que sempre foi na informação e na cultura que se encontraram as chaves para o esclarecimento e a evolução pessoal e social. Diante de tal cenário, nem preciso dizer quão fácil seria imaginar uma sociedade futura semelhante àquela vista em Fahrenheit 451, ficção científica dirigida pelo mestre François Truffaut na qual os livros foram sumariamente proibidos e seus leitores, transformados em criminosos passíveis de execução à queima-roupa. 

Adaptado do romance homônimo de Ray Bradbury, o roteiro escrito por Jean-Louis Richard (que se tornaria um colaborador frequente na carreira de Truffaut) ao lado do próprio diretor e ambientado em um futuro indeterminado gira em torno de Montag (Werner), um bombeiro londrino cujas principais responsabilidades são investigar possíveis leitores e encontrar seus livros para, por fim, incinerá-los. Casado com a bela e alienada Linda (Christie), o sujeito conhece acidentalmente a professora infantil Clarisse (também interpretada por Christie) durante uma viagem de trem, passando a encontrá-la com frequência e auxiliá-la em alguns de seus problemas pessoais, como a demissão repentina da escola onde trabalhou por anos. A medida que o tempo passa, Clarisse passa a influenciar Montag, que, uma vez incitado a experimentar alguns minutos sobre o clássico ‘David Copperfield’, de Charles Dickens, torna-se um leitor assíduo e entusiasmado, colocando em cheque não apenas seu emprego e uma eventual promoção, mas também sua própria segurança. 
Primeiro filme colorido da carreira de Truffaut e o único falado em língua inglesa, Fahrenheit 451 é capaz de surpreender o espectador logo em seus primeiros minutos, quando, apresentando os créditos iniciais através de uma narração em off não acompanhada pelos tradicionais letreiros sobrepostos, o insere no clima de paranoia que dará o tom da projeção durante todos os seus 112 minutos, nos quais nenhuma palavra é vista sem que esteja impressa em um dos diversos livros que são incendiados. Utilizando uma trilha sonora over que claramente se inspira nos acordes altos que se tornaram característicos nos filmes de Alfred Hitchcock, o longa jamais deixa de funcionar como exercício de gênero, propondo um conceito intrigante e o levando até às últimas consequências – e se suas metáforas em relação ao abuso do poder e à alienação promovida pela TV podem soar um tanto óbvias e ingênuas para o espectador contemporâneo, basta lembrar que tais assuntos ainda não haviam sido tão debatidos no ano em que o longa foi lançado.
Divertindo-se ao conceber trens cujos trilhos se localizam na parte de cima, carros de bombeiro que remetem a pequenos tanques de guerra e programas de televisão bizarros que convidam o espectador a “participar” de suas novelas, Truffaut cria um mundo desolado e sem vida, dominado pelo cinza e em que mal pode-se ver uma pessoa andando pelas ruas. Povoado por indivíduos castrados de qualquer sinal de personalidade, o universo proposto pelo cineasta francês busca imaginar os possíveis efeitos da proibição da literatura, transformando os humanos em seres incapazes de demonstrar seus sentimentos e para quem qualquer tipo de emoção é considerado nocivo por “fazer-nos sonhar com uma vida que jamais teremos” – e nesse sentido, o longa traz duas cenas absolutamente impactantes; aquela em que certa mulher se entrega aos prantos ao ouvir Montag ler-lhe um livro pela primeira vez e outra em que o protagonista é questionado por um médico se Linda tem tomado pílulas e a resposta afirmativa acaba mostrando-se exatamente a que o sujeito esperava, subvertendo imediatamente nossas expectativas.
Utilizando a maior parte das ferramentas estéticas típicas da nouvelle vague, ainda que com uma frequência menor, Truffaut imprime zooms, raccords sonoros e justaposições a fim de conferir cadência e beleza estética ao longa – e se em alguns momentos o cineasta parece brincar com suas trucagens de maneira simplesmente aleatória (a split screen utilizada no momento em que uma pessoa é revistada por Montag surge abrupta e sem sentido), em outros ele o faz com claros propósitos narativos (como o jump cut que “afasta” Montag e Clarisse após constatarem que não poderão permanecer juntos). Com o auxílio do montador Thom Noble (de Red – Aposentados e Perigosos, então estreante na função), Truffaut imprime um ritmo impecável ao projeto, usando os cortes secos para impor um ritmo fluido e enxuto à sua narrativa – algo que pode ser visto no momento em que Montag e Clarisse saem de um restaurante e Noble imediatamente corta para o plano em que a moça já tenta fazer uma ligação dentro de uma cabine telefônica.
Vivendo um arco dramático reconhecível e interessante em que passa de perseguidor a perseguido, Montag é interpretado de maneira contida e competente por Oskar Werner, que, repetindo a parceria com Truffaut estabelecida no clássico Jules & Jim, transforma o protagonista em um homem de gestos tímidos e hábitos militares que condizem perfeitamente com o universo no qual está inserido (ainda que o diretor, com quem o protagonista trocava rusgas fora de quadro, preferisse uma interpretação mais visceral em que Montag se comportasse praticamente como um animal). Enquanto isso, em seu primeiro projeto pós-Doutor Jivago e anos antes de se tornar uma das musas da chamada Nova Hollywood, Julie Christie se divide entre Linda e Clarisse de maneira bastante eficiente, compondo a primeira como uma moça ingênua e conformada e a segunda como uma mulher segura e determinada a lutar por seus ideais.
Repleto de promessas que jamais se cumprem e, por isso mesmo, que funcionam perfeitamente na criação de uma atmosfera imprevisível (como a incapacidade de Montag de utilizar o “poste”, por exemplo) e encontrando uma solução eficaz e original para o seu desfecho (gosto muito da ideia dos homens-livro), Fahrenheit 451 pode não ser um longa que nós normalmente atribuiríamos a François Truffaut, mas é uma obra relevante que, mesmo quarenta e seis anos depois de seu lançamento, continua apresentando um futuro não muito absurdo a uma sociedade cheia de facilidades como os e-books e o Kindle, mas ainda cheia de gente que simplesmente se recusa a ler. 
Publicação gentilmente produzida por João Marcos Flores, autor e editor do blog Pipoca dos Outros, para o especial François Truffaut do Cinema com Crítica.

* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na segunda, 6 de fevereiro, com A Sereia do Mississipi (1969).

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5 comentários em “Fahrenheit 451”

  1. Texto de mais um dos meus ótimos colaborados. Recomendo visitar o seu BLOG (Pipoca dos Outros), ele escreve de maneira inteligente, fluida e ágil com comentários explicativos e claros.

    Os próximos são O Garoto Selvagem, A Sereia do Mississipi e Beijos Roubados. Gosta de algum?

    Abraços.

  2. Excelente texto do João Marcos… o fato dos créditos serem narrados em off me chamou muito a atenção e demonstra uma criatividade artistica imensa do Truffaut.

  3. O João Marcos é um dos críticos da blogosfera mais inteligentes nas anotações e acessível. E François Truffaut era genial: tipografar os créditos apenas afastaria a relevante metáfora apresentada na narrativa.

  4. Na verdade não foi ele que criou, esse recurso foi criado pelo Ingmar Bergman, mas o uso dele em Fahrenheit fez muito mais sentido, e realmente foi genial.

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