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O Artista

O Artista (The Artist, França/Bélgica, 2011). Direção: Michel Hazanavicius. Roteiro: Michel Hazanavicius. Elenco: Jean Dujardin, Bérenice Bejo, John Goodman, James Cromwell, Penelope Ann Miller, Missi Pyle, Beth Grant, Ed Lauter, Joel Murray, Malcolm McDowell. Duração: 100 minutos.

A única palavra que consigo pensar para descrever com justiça O Artista é nostalgia. Uma deliciosamente melancólica nostalgia de suaves e doces contornos envolvendo a universal história de um homem incapaz de adaptar-se às mudanças no meio artístico, assumindo uma postura intransigente, conservadora e avessa a única coisa que jamais é interrompida: o progresso. É, porém, a forma com que essa história é contada que converte O Artista no grande favorito do Oscar deste ano: convidando a conhecer a década de 20, o filme revive o auge do cinema mudo e o declínio deste com o surgimento dos talkies, os filmes falados, a partir do declínio da estrela de cinema mudo George Valentin, o diretor e roteirista Michael Hazanavicius oferece ao espectador uma experiência metalinguisticamente completa e ousada produzindo um filme mudo em plena era do cinema digital e do avanço quase canibalístico do 3D nas telas. Melhor, Hazanavicius não usa esse formato gratuitamente, explorando-o de forma inteligente e divertida, refletindo sobre o cinema e homenageando essa arte. Como não premiar um filme desses?
Engana-se, no entanto, quem pensa que a ideia de Hazanavicius é inédita. Encontrando eco imediato nos anos 50 com o clássico Cantando na Chuva, o roteiro reaproveita o momento histórico daquele longa convidando o cinéfilo a reencontrar situações e personagens apresentados naquele exemplar ao mesmo tempo em que os subverte. Como disfarçar a semelhança física entre Constance (Pyle), a co-protagonista do filme dentro do filme visto no prólogo, e a vilã Lina Lamont (interpretada por Jean Hagen)? Ou como não identificar no sorriso charmoso e conquistador de Valentin e no seu sapateado (Dujardin, favorito ao Oscar de ator) a imagem de Gene Kelly? Por outro lado, é gratificante enxergar a difícil transição na vida de Valentin, algo que naquele longa era desprovido de maiores obstáculos.

Contudo, muito mais do que uma homenagem à história do cinema, O Artista é um filme doce e tenro com certo interesse em algumas curiosidades frívolas (você sabia que no sinal de Hollywood lia-se, na verdade, Hollywoodland?) e, mormente preocupado no desenvolvimento adequado de seus personagens usando quase que exclusivamente a linguagem visual e a composição canastra e efusiva de seus personagens. Assim, ainda que os créditos inicias imediatamente nos remetam à produção da década de 20 e as palmas mudas de uma platéia admirada nos atinja com certa surpresa, é a trajetória do seu vaidoso e orgulhoso astro e o relacionamento desse com o silêncio o real interesse de Hazanavicius.

Desde a jactância do cumprimento à platéia, o ator francês Jean Dujardin seduz o espectador com seu olhar canastrão e um sorriso natural e perene. Altivo, simpático e consciente de sua fama, o indício da arrogância vulgarizada pelo roteiro como cafajestice, Dujardin é incapaz de disfarçar o vazio advindo do ostracismo, o que é denunciado na inédita e progressiva timidez do seu sorriso e nas costeletas levemente grisalhas que não escondem o decurso do tempo e uma assoladora depressão. Usando exclusivamente a ginástica facial, a postura, o gestual e os raros letreiros reproduzindo os diálogos, o (para mim desconhecido) ator francês maravilha com a complexidade de sua composição tornando fácil observar a dor da dispensabilidade ao ouvir o fustigador elogio “meu pai é um grande fã”.

Atraído pela oportunista, frágil e dependente Peppy Miller (Bejo), essencial em alimentar o orgulho de Valentin, a meteórica ascensão da atriz, de figurante à estrela, acentua a irônica tragédia pessoal do ator. Longe de ser terminantemente interesseira nos esforços de se tornar uma celebridade, Peppy revela uma meiguice e dedicação comoventes, e o brilho no olhar expõem mais do que poderíamos pressupor no início.

Combinando a lacônica história de amor dos dois, o tocante estudo de personagem e o retrato histórico acentuado na formidável direção de arte de Laurence Benett conferindo imponência ao grande teatro visto no início (observe o letreiro pedindo “faça silêncio”) e personalidade ao camarim dos astros, Michel Hazanavicius, co-montador juntamente de Anne-Sophie Bion, emprega sem exageros as técnicas popularizadas nos anos 20, como o efeito de íris, as cortinas e os establhishing shots. Construindo momentos de extrema felicidade e fluidez, a dupla investe nas sobreposições ricas em informações que empurram a história para frente e aproximam Valentin do fundo do poço – muito bem representado no simbolismo da areia movediça. Nesse sentido, como não se emocionar com as memoráveis tomadas gravadas da cena 20 do filme dentre do filme “A German Affair”, acompanhadas pela excelente trilha sonora de Ludovic Bource. Aliás, em se tratando de um filme mudo, o trabalho do compositor é soberbo, preenchendo as lacunas que atualmente a fala e os efeitos sonoros encarregam-se.

Aproveitando-se das possibilidades que o cinema mudo proporciona quando criticamente encarado, Michel Hazanavicius reproduz exatamente o que seria um pesadelo contextual de George Valentin e introduz tiradas semanticamente ricas, como a manchete de um jornal que lê “O mundo está falando” ou o letreiro que revela o desejo do ator de ver seu cachorro falar (que fique bem claro, um dos personagens mais agradáveis da narrativa). Inteligente também em enquadrar Peppy dois degraus acima de Valentin, no indicativo da atual superioridade da moça no estúdio, Hazanavicius também é auxiliado pela ótima fotografia no etéreo branco e preto de Guillaume Schiffman além de contar com um elenco de apoio rico com nomes conhecidos, como John Goodman ou James Cromwell.

Embora não próximo de ser o melhor filme mudo produzido – é deveras simplista -, O Artista vem no momento de renovar o amor de cinéfilos pela história da arte que prezam numa sensação equivalente a de recordar os primeiros passos e palavras de um filho ou afilhado: uma orgulhosa felicidade proveniente das lembranças e da possibilidade de vivenciar infinitamente aqueles momentos de novo.

Um amor honesto, indescritível e imortal. 

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13 comentários em “O Artista”

  1. The Artist me encantou. E realmente, quem diria que um filme mudo em preto e branco iria possuir um aspecto mais revolucionário ou avant-garde em tempos de 3D e digital. Fora isso Dujardin é um interprete sensacional, a Bejo tem um carisma contagiante, e é sempre um prazer rever atores com John Goodman, Malcom McDowell e Penelope Ann Miller.

  2. As pessoas ficaram master encantadas com a idéia de homenagear e fazer um filme mudo nos dias de hoje – o que de fato é muito legal mesmo-, mas deixam passar alguns deméritos. Por exemplo, achei a relação entre o casalzinho muito artificial na parte romântica da coisa, só funcionando bem como um usa o outro de trampolim pra carreira, de comparar as diferenças entre geração, aceitação de mudanças da então industria cinematográfica. Outra coisa, é que a todo momento entram textos, quase nunca deixa a idéia de fato se desenvolver como deveria. A impressão que tive é de que o diretor e roteirista não conseguiram manter o argumento (ótimo) dentro do contexto mudo, então não resistiram e abusaram do recurso. Ah, se por um lado Dujardin é deveras simpático e talentoso, Bérénice Bejo é quase o oposto.

    De qualquer forma, acho que é um filme que merece muito ser visto, só não concordo com todo esse culto que como bem sei, logo menos cairá água abaixo.

  3. Daniel, eu concordo com a simplicidade do relacionamento, eu não o acho muito bem desenvolvido, ainda que aceitável. Já discordo do uso de letreiros – era hábito comum nos filmes da década de 10 a 30 e também acho que ele usou satisfatoriamente a ausência de áudio (as cenas das palmas, ou o pesadelo, ou o BANG!). Porém, eu entendo que o filme passe a impressão de ser melhor do que realmente é, existiram muitos filmes mudos superiores.

    Muito boa a sua opinião (como de praxe).
    Abraços.

  4. Hehehe, propaganda hollywoodiana é fogo, filme de história simples, contado de forma nem muito diferente assim, pq antigamente todos eram assim, os atores estão ótimos, mas o filme proporciona isso, mais um exemplo onde o papel foi feito para o ator e nesse caso, a maioria dos atores medianos se daria bem. Ótima direção de arte. Deixo uma ressalva, o filme é chatinho de se assistir.

  5. Ótimo texto! Um dos melhores entre todos os que tive a oportunidade de ler. Acho "O Artista" um dos maiores acontecimentos cinematográficos do ano, quiçá o melhor! Roteiro louvável, fotografia e trilha sonora indefectíveis! Fora a performance de Dujardin… parabéns pela resenha!

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