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O Homem que Matou o Facínora

The Man Who Shot Liberty Valance, Estados Unidos, 2012. Direção: John Ford. Roteiro: James Warner Bellah e Willis Goldbeck. Elenco: John Wayne, James Stewart, Vera Miles, Lee Marvin, Edmon O’Brien, Andy Devine, Ken Murray, Woody Strode, John Qualen e John Carradine. Duração: 123 minutos.

John Ford e John Wayne são nomes obrigatórios que ajudaram a estabelecer as fundações do gênero mais norte-americano do cinema: o faroeste. Tendo colaborado ao longo de décadas, desde o divisor de águas do gênero No Tempo das Diligências (1939), a parceria ajudou a popularizar os duelos ao amanhecer, as brigas no saloon regadas a álcool e a imagem do caubói/xerife truculento que conquistava o coração da donzela mais pela força do que por sentimento, elementos tão bem sucedidos que subsistem até hoje no imaginário do velho oeste. Portanto, não deixa de ser irônico que Ford e Wayne, em O Homem que Matou o Facínora, apesar de não desconstruírem inteiramente o faroeste clássico, sejam os responsáveis por desmistificar muitos dos clichês atribuídos ao gênero e abrir as porteiras para estender e inovar a confortável e rudimentar estética narrativa do velho oeste, construindo uma obra que, embora apenas correta do ponto de vista narrativo, surge extremamente recompensadora e saudosista.

Depois de regressar a Shinbone para o funeral de Tom Doniphon (Wayne), o Senador Ransom Stoddard (Stewart) decide confessar ao jornal local a história do episódio que lhe rendeu fama e notoriedade: a morte do criminoso Liberty Valance (Marvin). A partir da estrutura em um longo flashback, Ransom recorda a violenta recepção na chegada à cidade quando ainda era um graduado em direito inexperiente e entusiasta, o discreto envolvimento com Hallie (Miles), a participação na disputa eleitoral entre fazendeiros e criadores de gado e, claro, a conflituosa relação com o respeitado Tom, dono de um posicionamento moral e social ultrapassado, baseado no poder da arma, e que também disputava a afeição de Hallie.

Estabelecendo a dicotomia lenda e fato como norte da narrativa, o diretor John Ford elabora um intrigante estudo onde, em uma primeira leitura, a imponente persona cinematográfica de John Wayne se amolda perfeitamente ao mito, enquanto o frágil e escolado personagem de James Stewart a inegável constatação de que a civilização chegara ao velho oeste. Grande engano! Fomentando rumores a partir da “ação” de Ransom e concedendo a ele os louros devidos a grandes heróis, a narrativa termina por relegar o autêntico caubói a um ostracismo e anonimato que lenda alguma deveria conhecer, brincando com as expectativas do público que esperava confortavelmente clichês jamais concretizados. O que converte o duelo pelo coração de Hallie em um triângulo amoroso surpreendente, marcado pela relutância de Ransom e pelos ciúmes de Tom, inesperado sentimento vindo de alguém tão reverenciado.

Ademais, Tom e Ransom são partidários de conceitos de justiça completamente antagônicos: se este defende que a “educação é a base da lei e ordem“, o outro crê na sobrevivência do mais forte, ou seja, na justiça da pistola, do mais rápido e preciso no gatilho. Isto não o torna um homem mau e violento, mas, certamente, alguém criado no cinismo e realidade de uma terra sem lei, condenado à simbólica figura de um cactus, cujo espinhoso exterior (sinônimo de seu jeitão protetor e ríspido) não impede que se vislumbre a bela flor que dele brota. Por sua vez, não deixa de ser uma ironia genial que a morte do facínora seja o que conduz o pacato, digno e resistente à violência Ransom ao Senado, levando-o a empunhar a arma e a crer, ingenuamente, estar lutando suas próprias batalhas.
Junto a estes dois monstros do cinema, o elenco secundário, embora abrace esteriótipos, sugere detalhes sutis e significativos. Se o medroso e glutão xerife Link (Devine) e o escravo prestativo Pompey (Strode) não parecer fugir da zona de conforto, Hallie não é exatamente a donzela indefesa, revelando força e independência quando a situação o exige, nem tampouco Peabody (O’Brien) é somente um jornalista beberrão, e sua demonstração de caráter ao defender a liberdade de imprensa com sangue impacta, pois prevíamos uma ação covarde. Deles, porém, é Lee Marvin quem se destaca na composição de um vilão perverso a ponto de agitar a, aparentemente, inabalável consciência de Ransom (e não consigo imaginar como este filme funcionaria se não sentíssemos que Liberty Valance é, bem, um facínora).

Levando o faroeste a um novo rumo, O Homem que Matou o Facínora também surpreende nos menores detalhes, e ao ver James Stewart topar a cabeça na escada e gaguejar os diálogos durante a eleição dos delegados de Shinbone, deve-se aplaudir John Ford, que ao prosseguir na cena ao invés de gritar o corte, confere maior verossimilhança ao jeito desastrado e inseguro de Ransom. Assim, mesmo que estejamos em face de um autêntico exemplar do gênero, e a locomotiva cuspindo fumaça, o assalto à diligência e o duelo não me levam a pensar diferente, ao final, dissecamos não só o contexto daquele momento histórico, mas também a intimidade daquele idealista advogado e do caubói macho saudosamente lembrado por nossos pais, para descobrir não lendas e mitos, mas fatos e homens de carne e osso que povoaram o velho oeste.

Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, Sanjuro.

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3 comentários em “O Homem que Matou o Facínora”

  1. Adorei o texto Márcio. Ótimo como sempre! Me estimulou a corrigir minha grande vergonha cinéfila de ainda não ter conferido esse necessário clássico do Faroeste. Stewart, Wayne e John Ford – Não tem como ser menos que obra-prima. Grande abraço e parabéns pelo post!

  2. Meu caro amigo, parabéns pelo maravilhoso texto, e pela abordagem merecida que fez desse filme. Eu gosto muito desse filme, na verdade, um dos meus favoritos do Ford, e vê-lo aqui, especialmente abordado com tal categoria, foi muito bom. O interessante é que você aponta algo que eu também acredito, e concordo com você: o filme não muda a face do western, mas certamente "abriu as porteiras" para uma crescente desconstrução do gênero e humanização, por assim dizer, do cowboy, que se daria dali para frente.
    Simplesmente maravilhoso!!!

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