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Tempestade sobre Washington

Advise & Consent, Estados Unidos, 1962. Direção: Otto Preminger. Roteiro: Wendell Mayes baseado no livro de Allen Drury. Elenco: Franchot Tone, Lew Ayres, Henry Fonda, Walter Pidgeon, Charles Laughton, Don Murray, Peter Lawford, Gene Tierney, Burgess Meredith, Paul Ford, George Grizzard, Inga Swenson e Paul McGrath. Duração: 139 minutos.

Preconceito, fanatismo e demagogia; toleramos quase tudo isso no Senado, exceto desonra“. São estas as “honestas” palavras do líder do partido majoritário, Bob Munson, quando interpela um colega que extrapolou o flexível decoro parlamentar em suas condutas. Pois, até mesmo para aqueles homens sentados nos tronos do congresso e pautados, na sua maioria, no cinismo, amoralidade e arrogância, existe um limite ético que jamais deveria ser ultrapassado. Neste ponto reside o meu fascínio por dramas políticos: ao final, o invólucro se quebra e revela pessoas de carne e osso tão embevecidos de poder que mal pesaram as consequências de manobras políticas sujas, ardis covardes e a falsa ilusão de democracia. Assim, ao invés de Tempestade sobre Washington ser somente um filme sobre os trâmites políticos (algo que faz muito bem), também é um esforço de desmistificação e humanização dos personagens que comandam as nações e o destino de milhões de habitantes. Um verdadeiro colosso cinematográfico!

Adaptado do livro reportadamente fictício de Allen Drury, mas sabido ser baseado em incidentes e políticos reais, como John F. Kennedy e Joseph McCarthy, o roteiro de Wendell Mayes gira em torno de algo aparentemente corriqueiro: a formação de uma comissão no Senado para referendar a nomeação do novo Secretário de Estado, Robert Leffingwell, indicado pelo Presidente (o apelido “Russ” relembra Franklin Roosevelt). Neste contexto, Bob Munson tem a missão de manter a situação sob controle, embora desde a manchete nos jornais matutinos, soubesse que esta seria uma tarefa difícil. Afinal de contas, se ser unanimidade na política é raro, inflamados pelo discurso vingativo do senador de oposição Seab Cooley e movidos por sentimentos de lealdade partidária, muitos começam a contestar Leffingwell (uns mencionam seus rompantes de caráter, outros de que ele se trata de um intelectual prepotente e nem mesmo os correligionários do partido majoritário acordam entre si). Dá-se início a uma campanha difamatória para destruir a sua reputação, atribuindo-lhe a terrível alcunha de comunista (um pecado gigante para os norte-americanos naquele período histórico). Mas, o que existe, na prática, é somente uma interminável queda de braço por poder.

O poder é o que interessa ao diretor Otto Preminger mais do que o relatório final do subcomitê, e serve de espécie de dínamo para movimentar a máquina legislativa a abrir as portas de um baile de máscaras de alianças inesperadas e ranhuras indiscretas protagonizadas pelos parlamentares. Isto fica claro na irrelevância, digo, no desdém do cineasta para com Henry Fonda (um coadjuvante de luxo apesar de ocupar o assento principal) e o resultado da votação, promovendo um final satisfatoriamente irônico e político similar ao restante da narrativa. Uma decisão correta que permite investigar trivialidades (a necessidade de ostentar uma família para corresponder a exigência do american way of life – e merece aplausos a investida de Bob a Lafe ao referir que “viúvos têm mais dignidade do que solteiros“) e distinguir maquinações puramente políticas (o Presidente manifesta em tom de ameaça que a derrota de Leffingwell no Senado seria um ataque frontal aos Estados Unidos).

Dentre os senadores, o mais traiçoeiro é sem dúvida o experiente abutre político Seab Cooley (Charles Laughton no seu último papel antes de falecer). Empregando a tática de dar corda o suficiente para que seus adversários se enforquem, Seab não demonstra sequer pesar diante de uma tragédia, um “dano colateral”, e a composição de Laughton é perfeita em imprimir uma fala exausta, reflexo de 40 anos abrigados sob o teto do Capitólio, um sorriso dissimulado e uma postura algumas vezes desinteressada (ao ser questionado do porquê de aplaudir a uma decisão inconveniente, ele rebate “eu posso me dar o luxo de ser caridoso“) e nas outras vezes envaidecido de seus discursos venenosos. Inclusive os seus figurinos ressaltam uma aparente inofensividade, o nó da gravata é mal feito e o terno branco contrasta à sobriedade do dos demais.

Seria injustiça, porém, destacar apenas Charles Laughton quando o restante do elenco mostra-se afinadíssimo. Se Walter Pidgeon impõe respeito e autoridade em sua postura conservadora como o líder da maioria, Peter Lawford mostra-se conciliador e bom moço como o senador Lafe Smith (não à toa, inspirado em JFK). Já Lew Ayres não esconde a mágoa de ser um Vice-presidente pouco participativo (ele se refere ao cargo como “morar em uma mansão sem móveis“), embora seja o personagem mais lúcido e sensível da narrativa, diferente do Presidente, interpretado por Franchot Tone com um abatimento que confirma as fofocas sobre a saúde debilitada, e veja como após levantar o tom de voz na discussão com Brig Anderson, ele precisa recuperar o fôlego imediatamente. Mas, é Brig realmente o personagem mais trágico: movido por convicções éticas incompatíveis com a imoralidade do Senado, o jovem é vítima do cego idealismo que o impede de enxergar tons de cinza no preto e branco (e entristece constatar que o ótimo Don Murray não engatou uma carreira de sucesso nos cinemas). Finalmente, Henry Fonda está competente como de praxe e encarna Leffingwell como um homem de princípios e aparentemente irretocável que não hesita de ensinar uma mentira inocente a seu filho, e a penumbra mantida acima do seu passado incita-nos a desvendar seus segredos.

O que nos leva ao diretor austríaco Otto Preminger: dono de uma personalidade tirânica e intransigente, o cineasta é seguro na história que deseja contar e mesmo uma análise minuciosa quadro-a-quadro deixaria passar em branco detalhes planejados na meticulosa mise-en-scène. Veja o instante em que o Presidente vira às costas ao espectador envergonhado por compactuar com uma mentira, ou o encontro de Brig e Seab, quando a superioridade do primeiro, em pé no ponto de fuga, rapidamente some ao ser convidado para se sentar ao lado do outro no canto inferior esquerdo. As próprias sequências de pronunciamento no comitê destacam-se envolvendo grande número de figurantes (dentre ouvintes, fotógrafos e senadores) e revelando o olhar diligente de Leffingwell durante um testemunho ou a agitação de Fred van Ackerman.

Pontualmente, Otto Preminger até tropeça ao inserir a esposa do embaixador francês como mero recurso didático para instruir o espectador sobre a organização do Senado, mas é impossível não aplaudir a escalada da tensão provocada durante a extorsão ou a sutil decisão de manter fora do campo o suicídio de um personagem (a sugestão é mais poderosa e estimula a imaginação).

Insinuante, angustiante e contemporâneo, Tempestade sobre Washington cumpre a promessa incitada na imagem inicial e abre a cúpula do Capitólio para revelar homens, não deuses, e o que estão dispostos a fazer para defender seus interesses políticos e pessoais. Sem desonra, Bob poderia dizer; eu, porém, não poderia discordar mais.


Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição dupla, Pistoleiros do Entardecer de Sam Peckinpah e A Infância de Ivan de Andrey Tarkovskyi.

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1 comentário em “Tempestade sobre Washington”

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