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Festival Varilux de Cinema Francês 2012 – Dias 1 e 2

Na sua segunda edição em São Luís, o Festival Varilux de Cinema Francês 2012 vem mais ambicioso e robusto do que nos anos anteriores e conta agora com 17 produções inéditas inclusive de outros países além da França, como Líbano e Senegal. Tendo como objetivo apresentar ao público uma vitrine da diversidade cultural cinematográfica em variados gêneros, o Festival é uma oportunidade para os amantes do cinema assistirem a produções que sequer estreariam nas telas brasileiras. Como não poderia deixar de ser, o Cinema com Crítica, assim como no ano passado, vai realizar ao longo da semana uma cobertura dos filmes assistidos no Festival. Então, bem-vindos e comecemos!

1) Intocáveis (Intouchables), França, 2011. Direção: Olivier Nakache, Eric Toledano. Roteiro: Olivier Nakache, Eric Toledano. Elenco: François Cluzet, Omar Sy, Anne Le Ny, Audrey Fleurot, Clotilde Mollet, Alba Gaïa Kraghede Bellugi, Cyril Mendy, Dorothée Brière. Duração: 112 minutos.


Um dos maiores fenômenos de bilheteria da história do cinema francês, Intocáveis é uma comédia dramática indiferente à boa moral e que, milagrosamente, escapa ilesa de ser taxada de ofensiva. Inspirado em fatos reais, o roteiro de Olivier Nakache e Eric Toledano, que também dirigem, apresenta uma amizade tipicamente cinematográfica entre o aristocrata tetraplégico Philippe e o malandro senegalense Driss, contratado para ser o seu acompanhante particular apesar desta não ter sido a sua intenção original. Mesmo desconhecendo inteiramente o ofício – ele nem sabe a utilidade das meias de compressão – e sempre com um comentário depreciativo sobre a condição de Philippe, Driss também é capaz de disseminar alegria a todos ao seu redor com sua animação e jocosidade.

Para a surpresa coletiva, Driss é o mais indicado para lidar com Philippe que, tendo atingido o estágio de aceitação de sua deficiência, não deseja mais nenhuma compaixão. Os politicamente corretos poderão até chamar algumas ações de humilhantes – e são, à primeira vista -, mas elas é que proporcionam a camaradagem só existente nas amizades verdadeiras e fazem com que Philippe seja tratado novamente de forma igual. Apesar de derramar um bule de água fervendo nas pernas de um tetraplégico para testar a sua sensibilidade à dor não seja algo apropriado em qualquer circunstância, a curiosidade nonsense de Driss e o desinteresse de Philippe suavizam as acusações mais moralistas. E sem se preocupar em calçar as luvas de pelica com que tratamos deficientes, a narrativa subverte valores sem macular a essência de igualdade e humanidade: os comentários não tem resquícios de malícia (“ela pode ser feia, gorda e até deficiente“), as divertidas imitações ao estilo Eddie Murphy são exageradas na medida certa (a realizada em uma ópera envolvendo o Teleton) e a exploração consentida de vulnerabilidades sempre divertida (as barbas e bigodes). A alegria genuína de Philippe, e não mais o sarcasmo autodepreciativo, revela que finalmente aquele homem voltou a ser enxergado como igual, e não mais alguém preso a uma cadeira de rodas (um erro que, infelizmente, cometemos frequentemente).

Esse tom alheio à realidade é justamente o defeito de Intocáveis, onde soluções esquemáticas e o agir dos personagens denunciam estarmos apenas diante de uma mera fantasia. Driss resolve facilmente os contratempos, intervindo de forma impulsiva ao discar o telefone de Eléonore, o amor epistolar de Philippe, ou ao aconselhar a filha deste em relação a um amor adolescente, e não estaria exagerando se o comparasse a uma desbocada Mary Poppins. Além disso, as tentativas de devolver o filme ao mundo real falham na introdução esporádica de dramas familiares que servem só como desculpa para incluir um conflito no terceiro ato, com o envolvimento do primo mais novo de Driss na criminalidade.

Em regra, porém, os diretores são felizes na sensibilidade com que retratam a influência mútua de um no outro: Philippe acrescenta Earth, Wind & Fire e Kool and the Gang ao seu restrito gosto musical, passa a ostentar um chamativo brinco e adquire a alegria perdida no acidente; já Driss aprende uma lição sobre vida e cultura, inclusive realizando uma obra de arte para impressionar (e orgulhar) o seu novo amigo. Convencendo o espectador da amizade em formação, François Cluzet (um Dustin Hoffman francês, tanto em aparência quanto em talento) e Omar Sy parecem verdadeiramente desfrutar a companhia um do outro na cumplicidade, preocupação e sorrisos improvisados, elevando a narrativa a um alto patamar de humanidade.

Desinibido e doce, Intocáveis criou uma maneira bem mais eficiente de devolver a auto-estima e alegria aos portadores de necessidades especiais do que nossas cotidianas condutas robóticas presas a rígidos ditames da sociedade. E no seu deboche, a narrativa importa-se verdadeiramente com o bem-estar dessas pessoas sem esquecer de, no processo, arrancar gargalhadas politicamente incorretas.

P.S.: Agradeço à Aliança Francesa de São Luís, na figura do seu diretor Michael Magalhães, o generoso convite para o coquetel de lançamento do Festival e a exibição de Os Intocáveis.

2) E Agora, Aonde Vamos? (Et maintenant, on va où?), França/Líbano/Egito/Itália, 2011. Direção: Nadine Labaki. Roteiro: Rodney Al Haddid, Thomas Bidegain, Jihad Hojeily, Nadine Labaki e Sam Mounier. Elenco: Claude Baz Moussawbaa, Leyla Hakim, Nadine Labaki, Yvonne Maalouf, Antoinette Noufaily, Julian Farhat, Ali Haidar, Kevin Abboud, Petra Saghbini. Duração: 110 minutos.


Em uma pequena vila libanesa devastada pela guerra, a diretora, produtora, roteirista e atriz Nadine Labaki compreende, entristecida, que as mulheres nos conflitos armados “servem apenas para ficar de luto e usar preto para sempre“. Ao menos, este é o ponto de vista machista de um país segregado entre duas religiões, o islamismo e o cristianismo, e também é o que a atarefada autora ataca neste drama/comédia E Agora, Aonde Vamos?, filme selecionado pelo Líbano para competir ao Oscar de melhor filme estrangeiro no ano passado. Acompanhando uma procissão de mulheres enlutadas em direção ao cemitério da vila, umas com crucifixos nas mãos, outras com burcas sobre a cabeça, Nadine Labaki explora a afetuosidade e a união entre elas somente para fazer contraste com a beligerância religiosa de seus esposos e filhos separados até nos lotes do cemitério. Elas são a cola que mantêm as suas famílias a salvo e estão dispostas a qualquer estratagema para prevenir a guerra ensaiada em ofensas religiosas cuja autoria permanece desconhecida (certo momento, um animal invade a mesquita islã e noutro, a água benta é substituída por sangue de galinha na pia batismal).

Antes, a trégua permitia a convivência harmônica anunciada na mensagem de paz do imã e do padre e o flerte entre a cristã Amale e o muçulmano Rabih. A instalação de antena no alto da montanha, com a participação de todos os jovens independente de credo, também une os habitantes em torno de um ideal comum, desconsiderando as diferenças. É triste portanto quando a situação degrada-se rapidamente e o clima amistoso é vencido por acusações e atos de brutalidade, como a agressão a um indefeso garotinho muçulmano de muletas. As portas do século XXI profetizadas pelo corpulento prefeito como um período de união, anunciam na verdade mais derramamento de sangue, novos enterros de filhos e maridos, algo que as mulheres da vila não podem mais aceitar.

Desenvolvendo divertidos planos para manter a cabeça dos homens ocupada com tudo menos a guerra, as mulheres chefiadas por Yvonne e Amale chegam a contratar prostitutas ucranianas para entretê-los e descobrir os seus segredos (o que exige um “sinal” divino no mínimo divertido) e preparam pães batizados com haxixe para afastá-los das armas. Entre cada nova ideia, a narrativa abraça o drama, as vezes de forma intensa como na morte de um jovem atingido por uma bala perdida e que obriga uma mãe a tomar uma decisão dificílima de abnegação em prol da paz. Contudo, se provoca bons risos, a narrativa é tão irregular que o público perde-se nos reais objetivos de Nadine Labaki, desejando proteger a vila da guerra sem abdicar do senso de humor e, no processo, inserindo até mesmo camadas de romance no ciúme infantil de Amale. A combinação não funciona bem, e o roteiro escrito a dez mãos não um bom sinal de homogeneidade. Finalmente, a inclusão de uma trilha incidental cantada pelas protagonistas ainda abala a seriedade de certas passagens que perdem o seu impacto dramático em prol de tolas coreografias e karaokês (gosto apenas da sequência inicial que me remeteu ao grego Attenberg de Athina Rachel Tsangari).

Apesar de ser os homens que têm a vida ameaçada nas trincheiras, em meio a lágrimas, sorrisos, maquinações, orações, promessas e luto, as mulheres também têm sacrifícios próprios. Assim, a última resolução tomada pelas mulheres para apaziguar os ânimos é tão oportuna e irônica que acaba deixando um gosto bom no final deste irregular E Agora, Aonde Vamos?.

3) O Barco da Esperança (La Pirogue), França/Senegal/Alemanha, 2012. Direção: Moussa Touré. Roteiro: Éric Névé e David Bouchet baseado no livro de Abasse Ndione. Elenco: Souleymane Seye Ndiaye, Laity Fall, Malamine Drame “Yalenguen,” Balla Diarra, Salif “Jean” Diallo, Babacar Oualy, Mame Astou Diallo, Saikou Lo, Ngalgou Diop. Duração: 87 minutos.


Assim como mexicanos sacrificam-se anualmente para concretizar o sonho de chegar “na terra prometida” atravessando a perigosa fronteira norte-americana, os senegalenses sonham com uma vida digna na Europa cruzando o oceano atlântico em pirogas, embarcações similares a grandes canoas. Seu destino são as ilhas Canários e em seguida a França, onde possivelmente acabarão marginalizados na periferia das grandes cidades. Tudo isso depois de vencerem a desanimadora estatística mencionada na narrativa (“1 em cada 10 pirogas nunca chega ao destino“) e os números apresentados no letreiro final. Baseado no livro de Abasse Ndione, o roteiro de Éric Névé e David Bouchet apresenta o pescador Baye laye (Ndiaye), o relutante capitão de uma dessas pirogas que levará 30 homens de etnias diversas ao velho continente e que se deparará na travessia com problemas que colocarão em risco a vida dos homens a bordo.

Bem intencionado, O Barco da Esperança afirma homenagear a vida e esperança daqueles homens. Mas, a verdade é que o filme só é uma maneira rasa de tatear o problema da miséria. Os tropeços começam logo nos testemunhos expositivos onde marujos contam uns aos outros os porquês de abandonarem sua terra (um deseja ser músico, o outro jogador de futebol, e há quem queira ter a sua própria plantação). Nesse sentido, eles são melhor definidos não pelo que são, e sim pela religião, origem, língua falada e elementos prosaicos, como o de um desesperado dono de uma galinha.

Já a narrativa dirigida por Moussa Touré é um esforço de paciência enorme – mesmo com 87 minutos – de provocar comoção ou tensão. Os conflitos surgem tarde demais, quase no término do segundo ato, e quando o fazem, são resolvidos de forma apressada, como a passageira clandestina a bordo e a descoberta de um barco à deriva. Até a morte de personagens importantes passa desapercebida aos nossos olhos, merecendo apenas uma breve menção, sem o cuidado para compensar o investimento emocional na fatigante jornada. Logo, assim que afirma que é impossível imaginar o sofrimento vivenciado no alto mar, não pude deixar de concordar porque em nenhum momento Touré acertou ao envolver o espectador (para ele, basta ser expositivo e encontrar os personagens afirmando a desconhecidos seus medos e desejos).

Cumulando sucessivos infortúnios – um motor quebra, a gasolina acaba, uma tempestade ataca a embarcação – claro que torcemos pelo sucesso da empreitada (afinal de contas, temos corações), mas bem que poderíamos ter conhecido melhor aqueles homens na jornada.

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2 comentários em “Festival Varilux de Cinema Francês 2012 – Dias 1 e 2”

  1. Avatar
    Andrey Lehnemann

    Intocáveis é cativante ao extremo. Bom saber que tu gostou também, Márcio. Igualmente não entendo o porquê de tantos terem o acusado de humilhar deficientes. Acho que o filme sempre consegue introduzir da forma mais natural possível as "brincadeiras" de Driss e como o ator trata o outro como igual. Só lembrei de uma cena que poderia gerar discussões que é a da água quente, mas só.

    Abração.

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