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Lolita

Lolita, Estados Unidos/Inglaterra, 1962. Direção: Stanley Kubrick. Roteiro: Vladimir Nabokov baseado no seu livro. Elenco: James Mason, Shelley Winters, Sue Lyon, Peter Sellers, Jerry Stovin, Diana Decker, Gary Cockrell. Duração: 152 minutos.


Certas histórias nunca deixarão de ser polêmicas, não importa quanto tempo tenha se passado, e uma das mais populares é a paixão avassaladora e obsessiva de um homem de meia idade pela jovem de 14 anos carinhosamente apelidada de Lolita. Encarando tabus e dialogando com a pedofilia, o escritor Vladimir Nabokov, também responsável pelo roteiro da adaptação, eternizou a ninfeta mais famosa da literatura e o diretor Stanley Kubrick deu-lhe rosto e vida nesta atrevida obra-prima. A história acompanha o pacato professor de inglês Humbert que se aloja, durante o verão norte-americano, na pensão de Charlotte Haze e se apaixona por sua filha, Dolores. Ciente da imoralidade do seu sentimento, melhor mantido platonicamente, Humbert cede aos escancarados flertes da anfitriã e se casa com ela, e assim pode permanecer próximo de Lolita (agora sua enteada).

Sem precisar ser explícito para chocar, Kubrick pauta a narrativa na sutileza e apenas sugere a conjunção sexual pontualmente, como no instante em que Lolita se recorda do passado ao rever Humbert. Sendo esta decisão mais incômoda e ambígua, o espectador vê-se obrigado a decifrar o que está escondido debaixo do véu de importantes passagens da narrativa, e a declaração de amor durante o intimista pintar de unhas deixa em aberto se Lolita estava sendo paternalmente doce ou belicosamente instigante. E mesmo quem opte pela segunda explicação, como eu, é impossível não condenar Humbert cujo discernimento deveria ser o bastante para refrear seu ímpeto sexual (no livro, a garota tem apenas 12 anos, o que torna mais grave o pecado de seu padrasto), e para afastar qualquer pensamento libidinoso bastaria uma manhã encarando a decoração infantil do quarto de Lolita, os recortes de estrelas colados na parede e um ursinho de pelúcia convenientemente repousando ao lado da cama. Ademais, o rosto meigo e delicado de Sue Lyon transmite fragilidade e não sensualidade, o que é exaltado na fotografia angelical da moça pelas lentes de Oswald Morris (observe o contraste depois que ela é vista, sem idealização, no final).

Porém, Lolita não é nenhum anjo, mas hábil em manipular os homens apreciando ser um delicado objeto de desejo, desfrutando genuinamente dos mimos recebidos. Kubrick também incita seus demais personagens a usar máscaras: Humbert esconde o ciúme quando insinua que Charlotte está sendo liberal demais com a filha ao permitir que esta passe a noite fora de casa com “outros garotos”; e da mesma forma, ele finge o luto após um trágico acidente (a trilha sonora, porém, não deixa que a alegria sentida por ele passe desapercebida). Para ele, é natural manter os sentimentos inapropriados presos na formalidade e sisudez britânicas, o que acaba tornando as explosões emocionais no terceiro ato (o desabar em prantos e a fúria histérica) em momentos marcantes por comparação. O que dizer então de Clare Quilty e as diversas máscaras empregados por Peter Sellers em uma atuação maliciosa, excêntrica e, porque não, grotesca? Contudo, entre esses personagens dúbios, quem mais sofre é Charlotte por abraçar incondicionalmente a sinceridade dos seus patéticos sentimentos, o que acaba por lhe condenar em uma narrativa que parece premiar a dissimulação.

Ainda assim, Kubrick acrescenta brechas onde se espreita a real personalidade dos personagens. Logo no primeiro encontro com Lolita, na antológica cena em que a moça está deitada bronzeando-se no jardim, Humbert mal contém a insegurança no olhar enquanto explora inquietamente a extensão do quadro, talvez envergonhado de demonstrar que sucumbiu a tentação (o que, obviamente, ele não consegue). Em outro momento, Humbert tatearia novamente a insegurança durante o confronto com um falso psicólogo, e o movimento de suas mãos se torna mais arredio na medida em que o nome de Lolita seja ventilado mais frequentemente na conversa. Além disso, o tratamento discreto por “pai” na frente dos amigos parece ter um peso indizível nas costas de Humbert, e a boa atuação de James Mason deixa claro a insatisfação do professor, mesmo que ele não possa demonstrá-la.

Meticulosamente planejado, com longas sequências impulsionadas pela força dos diálogos e a mise-en-scène, a sequência transcorrida na cama impressiona por transmitir múltiplos significativos com apenas um simples movimento: na cena, Humbert está seduzindo Charlotte enquanto fantasia com o porta-retrato de Lolita na cabeceira da cama, não obstante, no ponto de fuga; não tarda, porém, para que a sugestão de enviar a garota para estudar fora obrigue Humbert a rolar para o outro lado da cama e encarar uma pistola sobre a cabeceira oposta, retrato do destino trágico que lhe espera. Kubrick também é hábil ao torturar o espectador, e quando acompanhamos pausadamente uma máquina de escrever imprimindo revelações em uma carta, conseguimos compartilhar a mesma dor que Humbert sentirá ao lê-la.

Pecando na estrutura narrativa que apresenta Humbert já no fundo do poço assassinando Quilty na sua mansão para, só então, retroceder quatro anos no tempo e expor o que levou aquele homem a cometer crime tão hediondo, Kubrick acaba condenado antecipadamente o seu protagonista antes de expor os seus (imperdoáveis) pecados, uma atitude covarde que pareceu mais uma desculpa para satisfazer os ânimos exaltados dos censores à época. Da mesma forma, o breve letreiro do inconveniente epílogo serve apenas para saciar o apetite condenador do espectador, divergindo completamente da discrição empregada no restante da narrativa.

Tivesse Kubrick mantido-se fiel ao quadro inicial, no qual Humbert pinta as unhas dos pés de Lolita em um gesto deferente, e porque não submisso, ele enviaria o espectador não com a imagem definitiva de um monstro, mas a de um homem emocionalmente devastado por um amor proibido. Esta sim seria uma história universal sobre alguém digno de pena, revolta e ódio e, como qualquer outro criminoso, merecedor de um julgamento mais justo.

Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, o cinema francês de François Truffaut e Jean-Luc Godard com Jules & Jim e Viver a Vida, e Sempre aos Domingo, o vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro.

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7 comentários em “Lolita”

  1. o filme é bastante legal, mas achei um pouco inocente (por incrível que pareça), pois já havia lido o livro e esse sim é picante, intrigante, intenso!

  2. Assisti Lolita há muito tempo. Nem lembro direito, na verdade. Agora que adquiri o blu-ray dele (inveje!), e li seu texto, vou rever. Enfim, um verdadeiro clássico, com muita ousadia – pra época em que o cinema americano vivia. Quero ler o livro também!

  3. Encontrei esse filme por acaso, num sábado preguiçoso, zapeando entre os canais; não peguei desde o começo, estava já na cena de Humbert e Charlotte na cama, e agora que li sua resenha penso que pode ser por este motivo que compartilho de sua opinião sobre Humbert: também não o achei um monstro, mas um homem agoniado e em conflito com os próprios sentimentos. Gostei muito de sua resenha! 🙂

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