Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

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Festivais | 36a Mostra de São Paulo – Dia 1

01) A bela que dorme (Bella adormentata, Itália/França, 2012) – Direção: Mario Bellocchio.

Após um acidente de carro em 1992, Eluana Englaro permaneceu em estado vegetativo por 17 anos até o seu pai vencer uma árdua batalha judicial envolvendo ativistas pró-vida, defensores da eutanásia e a imprensa italiana e conseguir uma liminar para desligar o aparelho que a mantinham viva. A partir desse pano de fundo verídico que repercutiu e comoveu o mundo inteiro, o cineasta Mario Bellocchio explora uma narrativa fragmentada baseada em múltiplas histórias gravitando em torno de uma única questão: a liberdade de escolha da data de sua morte, para muitos, a última manifestação de dignidade de um ser humano.

Tendo um tema tão complexo nas mãos, esperava-se que o cineasta italiano propusesse um enfoque ideológico novo e ao menos não se limitasse a repetir os mesmos argumentos que já estamos acostumados a ouvir: a Igreja Católica é terminantemente contra e considera um pecado, a Política está indecisa como na maioria das questões polêmicas e põe à mesa do Senado uma votação a respeito de uma lei conservadora regulamentando a alimentação parenteral. Dentre os senadores está Uliano (Toni Servillo), cuja consciência contraria a intenção de voto do partido que o elegeu, afetada por um evento trágico ocorrido a uns anos e que o afastou de sua filha Maria (Alba Rohrwacher). Ela, por sua vez, é uma ativista pró-vida que protesta à porta do hospital de Eluana e conhece Roberto (Michele Riondino), um militante a favor da eutanásia por quem se apaixona.

Em outra linha narrativa, a atriz interpretada por Isabelle Huppert implora por um milagre que desperte a sua filha do coma, em uma dedicação obsessiva que a afastou do convívio familiar especial do filho negligenciado Federico (Brenno Placido). Por fim, Rossa (Maya Sansa) é uma drogada habituada a cometer furtos para manter o seu vício e também uma suicida em potencial até o dia em que para sob os cuidados do atencioso médico vivido por Pier Giorgio Bellocchio, filho do diretor.

Mosaicos normalmente permitem enxergar as muitas facetas de temas complexos, mas a abordagem de Mario Bellocchio é tanto superficial em alguns momentos (a comparação com o excelente Mar Adentro sempre vem a calhar nessas horas) como também é cômoda e condenável em outros. Como a votação no Senado depende do estado de Eluana, e ninguém sabe se ela continuará viva nos dias seguintes, o voto de Uliano perde totalmente a sua força sendo usado como mecanismo maniqueísta para reaproximá-lo da filha; já a retórica furada usada pelo médico para convencer Rossa a não se matar me pôs a questionar se a verdadeira intenção da moça era realmente se matar.

Pior do que isso, o argumento é tratado com uma mão pesadamente óbvia e sentimental e a cena em que Maria vira um crucifixo antes de transar com Roberto é o exemplo que me vem à cabeça nesse momento. Se ao menos se concentrasse no incômodo barulho do êmbolo e nos significados escondidos na artificialidade do intervalo preciso com que a filha da atriz respira, A bela que dorme teria mais impacto do que Mario Bellocchio poderia sonhar com essa obra rasteira.

02) A Feiticeira da Guerra (Rebelle, Canadá, 2012) – Direção: Kim Nguyen.

Indicado pelo Canadá ao Oscar de melhor filme estrangeiro 2013, a dolorosa trajetória da jovem Komona (Rachel Mwanza) se distancia da assinatura intimista comum aos filmes daquele país e conduz a sua narrativa a um local não especificado na África em que as disputas pelo poder entre o governo e o exército rebelde terminam por ceifar milhares de vidas inocentes. Aos 12 anos, Komona é sequestrada do seu vilarejo pelos homens do Grande Tigre, forçada a matar os pais e a integrar um bando de jovens treinados para ser assassinos.

Mas ao invés de se preocupar com o subtítulo político que alimenta as guerras civis no continente africano, evitando o didatismo comum em produções deste tipo, são as consequências do horror na vida da protagonista que nos chamam a atenção e o rosto embrutecido da ótima atriz exsuda tanta desesperança que nem o envolvimento amoroso com um gentil garoto mais velho conhecido por “O Mágico” (Serge Kanyinda) consegue afastar.

Em meio a disparos secos, sendo um dos primeiros assustadoramente doloroso graças à excelente edição de som, e a violentos atos de brutalidade, como um golpe de machete desferido no pescoço, não deixa de angustiar a óbvia constatação de que Komona nunca mais voltará a reencontrar a ingenuidade tipicamente infantil. Assombrada também por fantasmas cujas regras não ficam bastante claras na narrativa (seriam consequências da seiva de árvore alucinógena ou ela teria realmente poderes mágicos?), Komona acaba presa em uma espiral tão deprimente e dolorosa que não poderia deixar de lembrar de Preciosa.

Diferente deste exemplar, porém, a fotografia de Nicolas Bolduc curiosamente investe na beleza virginal da região existente nos rios de intenso brilho e na linda praia separada do continente por imponentes pedras. Mesmo a paisagem devastada pela ação humana, como o vilarejo incendiado, exulta uma paz que acalma os desejos esperançosos de salvação de Komona. Sem dúvida, a última coisa a que um ser humano pode se agarrar antes de adentrar no caos e loucura.

03) Aos 80 (Anfang 80, Áustria, 2011) – Direção: Gerhard Ertl e Sabine Hiebler

Bruno e Rosa passam uma tarde agradável juntos e inesperadamente se apaixonam, mesmo ele sendo comprometido com Herta. Seria uma história de amor convencional envolvendo escolhas se os jovens apaixonados não tivessem 80 anos e, nesta idade em que se encontram, a de ser invisíveis aos olhos dos demais, despertam a preocupação dos envolvidos diretamente, como os filhos de Bruno. Para piorar, Rosa sofre de câncer terminal e tem pouco meses de vida para viver esse romance.

Com um ar leve durante boa parte da projeção, uma fotografia quente e acalentadora e a reutilização de clichês das comédias românticas em contextos diferentes, não falta a montagem musical que faz uma coletânea de bons momentos do casal ou o melhor amigo, a direção de Herhard Ertl e Sabine Hiebler não sofre do mesmo preconceito que aflige os tensos coadjuvantes: os filhos de Bruno não entendem como o pai pode desperdiçar um casamento de 50 anos, os médicos e enfermeiros consideram a mudança para um novo apartamento temerária.

Independentemente deles, Rose e Bruno aproveitam o pouco que lhe resta para cultivar as boas memórias que manterão vivo esse relacionamento. Assim, Christine Ostermayer e Karl Merkatz além de trazer uma carga dramática intensa desde as rugas em seus rostos aos sinais de velhice no corpo também convencem como apaixonados, que mesmo incapazes de substituir o figurino desgastado, ao menos acrescentam o bem vindo tom de vermelho na sua vida pessoal. Provando que o amor nos torna mais engraçados, o senso de humor da narrativa é descontraído mesmo envolvendo elementos caricatos, como a dentadura da vaidosa Rosa e vergonha de ser vista sem ela ou um baseado.

A descontração e leveza é essencial para encaminhar a um terceiro ato previsivelmente mais dramático em que a atitude dedicada de Bruno e o desespero de Rosa diante de sua doença sedimentam definitivamente o envolvimento depositado no casal protagonista. E ao imaginar as lembranças de um toque ao passado, acabamos enxergando que o amor, não importa a duração ou idade, é o elixir de rejuvenescimento mais eficiente que existe.

04) Tabu (Idem, Portugal/Alemanha/Brasil/França, 2012) – Direção: Miguel Gomes

O cinema está cheio das mesmas histórias de amores impossíveis e dramas inimagináveis cujo resultado podemos antecipar com precisão invejável. Mas não é apenas na história que se fortalece a arte como na maneira com que ela é contada e o talento do cineasta Miguel Gomes transforma Tabu em uma experiência inusitada, coerente e acima de tudo original, mesmo baseada em um romance tão batido quanto o de Aurora e Ventura e na mensagem de que a vida infelizmente não é como nos nossos sonhos.

O roteiro também escrito por Gomes divide-se em duas épocas distintas: na primeira, a triste, gentil e abnegada Pilar (a excelente Teresa Madruga) lida com a depressão da vizinha Aurora (Laura Soveral) com a ajuda da bondosa doméstica Santa (Isabel Muñoz Cardoso); noutro momento, somos apresentados a uma história ocorrida há algumas décadas na África, na qual a jovem casada Aurora (Ana Moreira) apaixonou-se por Ventura (Carloto Cotta), o narrador, mesmo grávida de seu marido.

Com um senso de humor bastante característico presente nas últimas palavras de uma descrição ou de gags pontuais divertidíssimas (como não gargalhar na imagem de um jovem lutando boxe francês ou no book fotográfico de uma banda pseudo-Beatlhes?), o cineasta Miguel Gomes tem um estilo econômico de contar a sua narrativa. Distante da dinâmica tradicional de plano e contra-plano com pouquíssimos cortes e planos longos que ajudam barbaridade os seus atores, como o momento em que Aurora narra em círculos sofisticados como perdeu seu dinheiro no cassino, o cineasta abraça sem ressalvas o recurso da narração no segundo ato, produzindo uma espécie de cinema mudo em que não se ouvem os diálogos dos atores, apesar de sons diegéticos e a trilha sonora serem constantes.

Uma narração que afasta o sentimentalismo adjunto normalmente às histórias de amor trágicas por natureza, mas que também confere elegância e ineditismo a algo que já foi contado no cinema inúmeras vezes. Porém, não exatamente como em Tabu.

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