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Festivais | 36a Mostra de São Paulo – Dia 8

34) Bully (Idem, Estados Unidos, 2011) – Direção: Lee Hirsch.

Se um adulto tem enorme dificuldade em encarar humilhação e a exclusão de um círculo social, o que poderia acontecer com uma criança cuja personalidade está em processo de formação ainda? No documentário Bully, Lee Hirsch explora as consequências danosas dos abusos físicos e mentais cometidos nas escolas contra nossos jovens e a conivência na forma de omissão dos que deveriam zelar pelo seu bem-estar: os adultos. Mas o bullying, como é amplamente conhecido, não é um problema novo, embora só depois de atos extremos de brutalidade ele tenha ganhado maior destaque social e midiática.

Um desses casos foi o suicídio do jovem Tyler aos 17 anos e a partir dele, Lee Hirsch enfim dá a palavra às vítimas oprimidas e desvenda as inúmeras falhas no sistema que possibilitam a manutenção dessa cultura de violência. A causa pareceria até banal e os responsáveis estão cansados de se apoiar na tolice de que “crianças são cruéis”, um chavão facilmente derrubado por Hirsch no conselho dado por um pai para que o filho revide. Porém é mais fácil compreender pais egoístas tentando defender a sua cria do que a postura passiva do educador, como a diretora despreparada em responder aos argumentos feitos por um garoto, e da comunidade em geral, sendo um policial o sujeito mais preconceituoso e repugnante da narrativa ao afirmar que seria agressão somente se a jovem Ja’Maya, negra, tivesse sido “chicoteada”.

Revelando um recorte assustador de uma sociedade em que crianças proferem ameaças de violência e morte com absoluta naturalidade, o documentário ainda ratifica a postura condescendente do homem médio com a vingança e o desejo do pacato e adorável Alex de devolver na mesma moeda é uma consequência muito mais triste do que um roxo no braço. E parte o coração testemunhar o crescente desânimo de garotos cuja individualidade, o seu maior bem, acaba sendo justamente o que alimenta a intolerância dos demais.

Mas mesmo contando com um tema atual e obrigatório, Lee Hirsch demora até encontrar o ritmo certo de seu conto de alerta, soando desequilibrado na forma com que enfoca as múltiplas histórias dando mais destaque a umas do que as outras. Seu documentário sente também a falta de entrevistas com aqueles que praticam o bullying, embora as corajosas vítimas, especialmente durante a reunião municipal, suprirem emocionalmente essa ausência.

Estava mais do que na hora para um filme duro e revoltante como Bully.

35) A história de Tomi Ungerer (Far Out Isn’t Far Enough: The Tomi Ungerer Story, Estados Unidos, 2012) – Direção: Brad Bernstein.

Tomi Ungerer é um artista de intensas contradições, e é em função delas que ele se tornou alguém maior do que a vida. Renomado autor de histórias infantis, mas também ilustrador de perversões sexuais e conteúdo subversivo, Tomi manteve uma vida dupla até ser descoberto e marginalizado pelo cartel editorial conservador em Nova York. Tendo vivido “um conto de fadas com direito a todos os seus monstros”, esse interessante documentário faz um apanhado geral da vida do artista através de suas memórias e dos relatos contados com singular eloquência, nostalgia e sarcasmo por alguém que eu poderia passar horas e horas ouvindo ininterruptamente.

Nascido em Estrasburgo, “o esfíncter da Franças e o primeiro lugar a saber quando o país tem uma indigestão”, Tomi viveu tragédias desde cedo, como a morte do pai quando tinha apenas 3 anos deixando-lhe de herança o seu enorme talento para a arte. Mas foi a invasão nazista e a reocupação francesa da Alsácia os eventos que mais o marcaram, justificando a sua insistência em adicionar elementos de terror nos contos infantis, pois segundo ele, crianças deveriam ser traumatizadas para se desenvolver plenamente (como aconteceu consigo próprio). Dando espaço a personagens discriminados como uma serpente, o artista cultivou sua inspiração no feio e decrépito passando uma mensagem de tolerância aos pequeninos.

Contando com intervenções absolutamente geniais, sendo as minhas preferidas aquela em que diz “ter respeito por um pedaço de papel branco (…) que eu violo com a minha escrita e desenhos”, ou na revelação durante a visita a uma exposição de suas primeiras artes “eu tenho alergia aos meus trabalhos antigos”, um sentimento compartilhado por muitos artistas, e emendar comparando-os a filhos bastardos ou a uma família de falhas, a direção de Brad Bernstein também confere à narrativa um enfoque visual bastante atraente introduzindo oportunamente ilustrações do artista.

Apesar de simplório na abordagem cronológica linear, descobrir este artista curioso, maníaco e genial é a maior recompensa do ótimo A História de Tomi Ungerer.

36) Aqui e ali (Aquí y allá, Estados Unidos/Espanha/México, 2012) – Direção: Antonio Méndez Esparza.

Em certo momento de Aqui e Ali, o pai de família Pedro reúne a esposa e filhas e entoa uma cantiga singela, mas reveladora, cujos belos versos revelam seu desejo de ser humilde junto a sua “gente de verdade”, a sua família. A inspiração dos refrões é compreensível: tendo residido em Nova York por anos para enviar dinheiro para a família no México, Pedro enfim retornou à sua pobre cidade sonhando montar um grupo musical e permanecer junto a seus familiares. Porém as dificuldades financeiras frutas de um empréstimo para comprar instrumentos musicais para a banda e as despesas com a nascimento da filha caçula acabam obrigando Pedro a repensar seus planos.

Apresentando um ritmo contemplativo construído através de planos extensos e estáticos com os quais acompanha intimamente o cotidiano da família e a interação entre os seus membros, o diretor Antonio Méndez Esparza acerta no enfoque documental da narrativa e confere um caráter universal àquela família. A partir da revelação de que os prenomes dos personagens correspondem aos dos atores, Esparza introduz situações aparentemente banais e diálogos corriqueiros que, com sua naturalidade, reafirmam a verossimilhança do retrato apresentado.

Beneficiando-se da presença de atores amadores cujo semblante marcado pelo calor e exaustão parece conferir mais idade do que eles realmente têm – Teresa tem 30 anos conforme a ficha de admissão no hospital, embora pareça ter mais de 40 -, a direção também acrescenta importantes detalhes que comunicam bem mais do que palavras. Dessa forma, a discreta lágrima derramada por Teresa e que atinge a sua máscara hospitalar ao ver a filha prematura pela primeira vez revela uma mulher calejada e sofrida cuja felicidade limita-se a um gesto discreto e que passa desapercebido. Observe também a precariedade da casa de Pedro na qual uma cortina de plástico improvisada é amarrada no espelho da cama com um barbante para proteger do sol matutino.

Com a bela fotografia de Barbu Balasoiu, em que a iluminação natural sedimenta o teor documental da narrativa, Aqui e Ali é um retrato honesto e triste de um homem disposto a tudo ao seu alcance para assegurar o bem-estar de sua família, inclusive, abandoná-la.

37) Estrada de Palha (Idem, Portugal/Finlândia, 2012) – Direção: Rodrigo Areias.

Após viver muitos anos isolado nas frias paisagens do norte europeu, Alberto (Vitor Correia) retorna à Portugal para vingar o seu irmão, morto em razão de disputa por gado, e devolver a paz à sua cunhada e sobrinho. No entanto, ao chegar para cumprir seu objetivo, Alberto descobre um país mudado em que os tentáculos do governo real plantam a semente da impunidade e injustiça. Os tempos estão mudando e a existência de homens que prezam a defesa da honra com as próprias mãos não é mais necessária. É isto que o anti-herói vem a descobrir durante uma longa jornada em que dialoga com o faroeste espaguete de Sergio Leone, subvertendo-o e o sepultando de forma simbólica.

Escrito e dirigido por Rodrigo Areias, a história de Alberto discursa sobre política bem mais do que engendra a antecipada vingança. Através de citações do livro de David Henry Thoreau “A Desobediência Civil”, entrecortadas no decorrer da narrativa, Areias desmistifica a imprescindibilidade do personagem mais famoso de Sergio Leone, o Homem sem Nome. De nada adianta a honra do sujeito em ceder ao duelo contra um oficial real e a prontidão com que se apresenta à justiça se o Estado não respeita as regras que própria carrega debaixo do braço.

Mas esse subtítulo é ameaçado pela abordagem excessivamente contemplativa de Areias, sobretudo a sua insistência em planos abertos estáticos que enquadram a natureza ao redor do protagonista sem o menor rigor com o ritmo frouxo em demasia. Dessa forma, até atingir o desfecho da jornada de Alberto, a caminhada foi exaustiva e bem pouco gratificante mesmo havendo um protagonista complexo e avesso à violência desmedida.

Mesmo assim, eu devo aplaudir a corajosa sequência final, para alguns um anti-clímax por excelência, mas que esconde um subtítulo bem mais simbólico e atraente demarcando o fim de uma era através do funeral do único verdadeiro amigo de um pistoleiro: a sua arma. E subitamente, Alberto tornou-se um dinossauro cuja prática pessoal de justiça estava em processo de extinção em nome do monopólio da violência pelo Estado.

Só por esse melancólico contexto, Estrada de Palha vale o preço de admissão mesmo padecendo de ritmo e, claro, da trilha de Ennio Morricone.

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4 comentários em “Festivais | 36a Mostra de São Paulo – Dia 8”

  1. Lendo a crítica fiquei curioso sobre Estrada De Palha e percebo que o cinema português está passando por um bom momento, mesmo tendo grandes problemas de recurso para produção.

  2. Avatar
    Mauricio Battistuci

    Oi Márcio! Nos encontramos na sessão de Bully, sexta, na Reserva.
    Vejo que concordamos na falha do filme em não abordar a perspectiva do praticante do Bullying. No que não concordamos é no impacto que esta falha tem sobre o documentário e sua qualidade, ou efetividade em 'documentar'. Cenas como aquela em que a diretora do colégio pede à vítima e ao valentão que se cumprimentem dando as mãos, são emblemáticas da imbecilidade e incompetência da escola em tratar do bullying, e também chama a atenção das duas perspectivas do problema, que deveriam ser essencialmente exploradas. De tal forma, o filme se torna muito mais um manifesto anti-bullying, do que uma tentativa de compreender o problema e suas raízes (as consequências são muito bem exploradas). Então, nessa brincadeira de estrelas, daria 3 pra "Bully".

  3. Olá Maurício, bom estar em contato com um cinéfilo de posições tão interessantes e bem defendidas. De fato, Bully falha em investigar o problema, mas como conversamos na sessão, acho que Lee Hirsch queria mesmo era dar voz "aos oprimidos" (o que ele faz muito bem). Poderia ter adotado outra abordagem, mas da maneira como ficou achei um ótimo trabalho.

    Quem sabe não vem outro cineasta e documenta o bullying de outra perspectiva?

    Espero que nos visite mais vezes e contribua com suas opiniões.
    Abraços.

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