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Crítica | O Mestre

Título original: The Master | País de origem: Estados Unidos | Ano de lançamento: 2012 | Dirigido por: Paul Thomas Anderson | Escrito por: Paul Thomas Anderson | Elenco: Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Jesse Plemons, Ambyr Childers, Rami Malek e Laura Dern | Duração: 2h24min.

Em uma das muitas cenas memoráveis de O Mestre, o líder d’A Causa Lancaster Dodd, detido na cela adjacente ao do ex-marinheiro Freddie Quell, observa impassível este liberar a sua raiva batendo as costas contra um beliche e destruindo um vaso sanitário com pontapés igual a um animal. Mas nem bem Freddie questiona os valores pregados por aquela seita, a falsa ilusão de controle de Dodd cede lugar a gritos ruidosos e o rosto enrubescido de raiva. Mais do que duas personalidades em rota de colisão e misteriosamente atraídas uma pela outra, Quell e Dodd parecem só frações de uma consciência única nos moldes da psicanálise, respectivamente o id e o ego. Esse é o tipo de interpretação que as tridimensionais obras de Paul Thomas Anderson, um dos diretores mais interessantes em atividade, inspiram no espectador, embora desta vez a maioria dos espectadores esteja mais interessada em se prender à superficialidade do discurso da Cientologia.

Sem disfarçar que Lancaster Dodd é inspirado em L. Ron Hubbard, o criador da crença citada – algo que Anderson já assumiu em coletivas para imprensa -, existe mais nas entrelinhas do roteiro também de sua autoria do que a mera desconstrução do culto que move celebridades como John Travolta e Tom Cruise. Pra ser sincero, esse é o elemento menos relevante em uma narrativa que busca descortinar como e porque as seitas – entre as quais estão incluídas as denominações religiosas -, seduzem, conquistam e praticam uma forma de lavagem cerebral na cabeça dos seguidores transformando-os em meros recipientes de verdades imutáveis e pré-estabelecidas, dogmas portanto, tema já explorado anteriormente pelo cineasta com menos detalhes em Sangue Negro.

Só que em vez de retratar A Causa como uma seita maléfica, Anderson a humaniza (vejam a ironia nas entrelinhas) a partir da figura d’O Mestre, cuja excelente interpretação de Philip Seymour Hoffman confere voz mansa e racional a Dodd só perdendo a cabeça em explosões pontuais quando é questionado por outros. E mesmo se à primeira vista ele pareça em controle inabalável, perceba que dentro dele existe um homem que deseja só reviver os prazeres mundanos atiçados por Freddie. Daí a indissociabilidade entre os dois e as tentativas frustradas de domesticar Freddie, como quando ao devolver um “bom garoto” sempre que ele age conforme esperado. A associação com o ego é inevitável.

Já como o id, Freddie é devolvido a um primitivo estágio de evolução da humanidade e vê no sexo a única forma de escapismo das frustrações em sua vida (durante a guerra, o corpo de uma mulher modelada na areia da praia serve para esse fim). Assim, no auge do tratamento pel’A Causa, Freddie consegue inclusive controlar o ímpeto de transar com uma mulher casada. Por outro lado, a imagem de um oceano calmo e sem ondas, em contrapartida ao singular momento de um homem minúsculo fugindo da vida correndo por um campo aberto, surge em certos momentos para representar a breve paz espiritual e satisfação alcançada pelo rapaz, antes de devolver-se à instintividade novamente. Também é curioso destacar que Freddie, um ex-marinheiro, conhece Dodd apenas depois de cambalear para dentro do seu barco, o Alethia (do grego, verdade), fazendo com que o mar ainda represente a purificação tanto de um quanto de outro.

Entre os dois homens, Peggy é quem é a mais enigmática. Grávida, apesar de jamais vejamos a criança de seu ventre, ela tem Dodd sob controle com uma voz segura e sem inflexões, além de gestos como aquele praticado dentro de um banheiro. Um superego observador em um primeiro momento, capaz de reconhecer a importância da amizade de Freddie e o Mestre – o diálogo entre ela e aquele é revelador – ao mesmo tempo que busca podar por outros meios que não a regressão as raízes irracionais dele.

Agora voltem comigo à terra, ufa, já que essa viagem que fiz à psicanálise freudiana (ei, dá para perceber mesmo uma relação entre os nomes Freddie e Freud?) tem por base uma narrativa criada por um cineasta perfeccionista cujos menores detalhes não passam desapercebidos do seu controle: o choro de uma criança pode ser ouvido discretamente certo momento e o copo de vinho de Dodd é o único sobre a mesa do jantar que está pela metade. Mais ainda, Anderson extraí a melhor atuação da carreira de Joaquin Phoenix o levando ao momento mais impressionante e visceral da narrativa em que o ator responde às perguntas de Dodd sem piscar os olhos e em um crescendo de agonia interna.

Superficial só para quem quiser enxergá-lo como uma simples analogia à Cientologia, O Mestre é a nova obra-prima no pequeno, mas seleto portfólio de trabalhos de Paul Thomas Anderson que igual a Stanley Kubrick, um autêntico mestre e uma de suas mais fortes inspirações, prova que o cinema é mais do que entretenimento. Pode ser sublime.

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4 comentários em “Crítica | O Mestre”

  1. Eu posso lhe dizer que sempre que me lembro da cena em que Dodd faz as perguntas para Freddie eu vou às lágrimas. É, sem dúvidas, uma das cenas mais fortes que o cinema já me proporcionou. Falo em mim, pois como você sabe, ela me atinge familiarmente. Toda aquela cena me evidencia uma humanidade das duas partes que me devastou. Saí apenas com a carcaça de um corpo do cinema. Hoffman e Phoenix em atuações que não vejo em muito tempo. E enquadro aí figuras como Day-Lewis e Streep. Sua avaliação mais voltada para a psicanálise não é surpreendente. Tu falou em disparidades entre as críticas que leu, mas ressalta o poder que PTA tem em abordar as mais diferentes coisas para cada um. Todos possuem sua própria análise. Para mim, levanta ainda mais a excelência de O Mestre. E, meu amigo, penso que estamos vendo nos cinemas a carreira de um diretor que futuramente, assim como Aronofsky, será enquadrado na categoria de um dos maiores gênios do cinema. De longe, o melhor filme de 2012.

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