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Crítica | A Garota Desconhecida

A Garota Desconhecida

103 minutos

Acompanho o trabalho dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne desde Rosetta (1999) e me encanto com a estética crua e realista de seus estudos de personagens preocupados em retratar, de modo compulsivo, os dilemas enfrentados por seus protagonistas, homens e mulheres ordinários em quem nós poderíamos esbarrar na rua sem sequer se dar conta do peso dramático que carregam sobre os ombros. São cineastas humanitários cujo interesse cinge-se em estimular a empatia do espectador, aproximando-o de questões contemporâneas quanto as quais às vezes era ignorante. É o uso da arte a serviço da solidificação do laço de humanidade, e não há tema que chame mais a atenção nos dias de hoje do que a questão migratória, o foco deste mediano A Garota Desconhecida.

O roteiro de autoria da dupla transporta-nos à cidade de Liège, na Bélgica, onde a médica Jenny Davin (Haenel) está substituindo o antigo proprietário da clínica local que acabara de se aposentar, um estágio cujo prazo encerra-se com sua nomeação para um importante cargo. Ou assim deveria ocorrer pois, certa noite, após o fim do expediente e enquanto discutia com Julien (Bonnaud), seu assistente, a campainha do consultório toca e Jenny recusa-se a atender apenas para, no dia seguinte, receber a visita de policiais que solicitam cópias das câmeras de segurança para investigar a morte da mesmíssima pessoa que havia buscado refúgio naquela fatídica noite, uma imigrante africana. Responsabilizando-se, Jenny começa a investigar por conta própria qual a identidade da vítima e quem foi o autor do suposto crime.

É a oportunidade para que os Dardenne discutam a política migratória e a responsabilidade das nações pelo bem-estar não somente dos próprios cidadãos, mas daqueles que fugiram de seus países para salvar suas vidas da perseguição política, religiosa, étnica etc, e proponham reflexões relacionadas ao contexto geopolítico atual: quão desumana é a xenofobia materializada no ato de bater a porta na cara daqueles abandonados à própria sorte de apátrida? Até onde a democracia estende seus braços, para assegurar os direitos sonegados dos imigrantes?

Tais perguntas estão inseridas no formato minimalista da narrativa dos Dardenne: não há trilha sonora, nem mesmo incidental; a fotografia de Alain Marcoen emprega apenas a iluminação natural enquanto a câmera, muito bem operada, está nas mãos para, literalmente, acompanhar a protagonista e registrar seu cotidiano e suas descobertas; e a montagem de Marie-Hélène Dozo resume-se a administrar o ritmo, privando-se de construir sentido ou significado nos cortes secos e elipses. É o modo mais naturalista de contar histórias cuja força de gravidade está no tema narrado e no comportamento do protagonista, não em interpretações acerca do uso da linguagem cinematográfica, embora seja gratificante poder observar o detalhe sutil da mão trêmula de uma mãe enquanto limpa o rosto de seu filho que sofre uma convulsão.

E assim como em trabalhos passados dos Dardenne – cito os recentes Dois Dias, Uma Noite ou O Garoto da Bicicleta -, o lapso temporal da narrativa é exíguo – repare como há pouquíssimas trocas de figurino – e exige movimentação permanente para solucionar o mistério em tempo oportuno, embora ele seja o que há de menos relevante da trama. Importa-nos o comportamento de Jenny e sua culpabilização pelo que ocorreu, e infelizmente Adèle Haenel não reproduz a mesma força e intensidade de Marion Cotillard ou Cécile de France, de Olivier Gourmet ou Jérémie Renier, que já protagonizaram trabalhos dos diretores. A atriz não encontra na composição introspectiva e trancada qualquer saída para expressar o desgaste emocional decorrente da culpa, e com isso A Garota Desconhecida perde o que deveria ser o elo central com o espectador.

O roteiro também vacila no desenvolvimento da trama ao procurar respostas em soluções casuais, mas principalmente inconvincentes fora do universo realista em que a trama é desenvolvida. E em tramas como esta, não dá para ignorar soluções fáceis e desmotivantes, como aquela em que Jenny encontra, ao acaso, determinado personagem, ou então a confissão que põe termo à investigação, no que diagnostico como sendo remorso cinematográfico agudo.

Isso não diminui a minha admiração pelos Dardenne, que permanecem do lado certo quando o assunto são direitos humanos básicos em discussão na atualidade; afeta, entretanto, a apreciação narrativa do pertinente e irregular A Garota Desconhecida.


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