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Crítica | Muito Romântico

Muito Romântico

72 minutos

Ao longo de anos escrevendo sobre cinema, empreguei o termo “experimental” para categorizar narrativas inusuais e heterodoxas, e, inconscientemente, pude ter afugentado o público em geral do desafio que é apreciá-las. Hoje, com mais lucidez, entendo não haver mais espaço para taxonomias nesse sentido, afinal, toda narrativa é um experimento cinematográfico, às vezes com maior intensidade – como é o caso deste Muito Romântico –, noutras vezes, com virtualmente nenhum coelho na cartola senão o do conformismo em ser trivial. Essa reflexão decorre da própria vocação cinematográfica em narrar histórias, não meramente contá-las, ou seja, reproduzir mediante imagens, sons, montagens etc mais do que apenas tramas quadradas delimitadas por início, meio e fim, e, ao fazê-lo, demandar o esforço intelectual do espectador com a expectativa de retribuí-lo à altura.

Portanto, nada mais coerente do que Muito Romântico adotar um título tão genérico para narrar um típico romance, com altos, baixos e solavancos típicos com os quais podemos nos relacionar, porém de modo inusitado. Basicamente, o roteiro escrito por Melissa Dullius e Gustavo Jahn, que também dirigem e contracenam, acompanha um casal de artistas – batizados com os nomes dos intérpretes, insinuando que a narrativa permanecerá sobre a tênue linha que separa a ficção do documentário intimista oriundo de experiências pessoais – em sua travessia do Brasil à Alemanha, para onde imigram. Logo começam a extrair os frutos desta decisão, ora frescos, ora estragados, e a repensar, à luz deste desafio de vida, o próprio relacionamento.

O impacto da narrativa é imediato: fotografada em 16 mm, eis porque o grão da imagem é grosso e a razão de aspecto, quadrangular, atípicos no cinema contemporâneo, a trama carrega junto de si a mesma poeira de diários redescobertos, que retratam as pessoas que um dia fomos e com as quais perdemos a familiaridade no correr da vida. É este o convite para penetrar no recôndito da memória – que aqui assume contornos literais, escondido debaixo da cabeceira – e revisitar acontecimentos ou sentimentos não mais no banco do motorista, mas como observadores do próprio passado, o que justifica as (inúmeras) pistas deixadas de olhos, aqui entendidos por janelas na cabine do navio ou no apartamento, ambas dispostas simetricamente, e da história, por exemplo, as águas passadas e vencidas pelo navio ou, então, os trilhos percorridos pelo trem, cujas bifurcações têm significado tão óbvio que descrevê-lo soa como mero exercício em redundância.

De outro lado, o romance encontra na imigração ecos do seu próprio desenvolvimento natural, e o fascínio que enebria os novos apaixonados assemelha-se à idêntica sensação existente em viagens. Não é à toa que a expectativa durante o trajeto e a empolgação com a chegada (“Terra à vista” não poderia ser mais pertinente no contexto) são pontos altos e difíceis de ser superados após o advento da rotina e dos problemas que dela decorrem. E a paleta de cores ajuda a entender a maneira com que Melissa e Gustavo reagem a esta mudança radical: enquanto o azul do mar e dos figurinos que ele veste denuncia a depressão – a imagem dele esvaecido sobre a cama é bastante evocativa – e a posterior insegurança amorosa, o vermelho do barco, logo mais sólido e menos volúvel que a água, e, de novo, dos figurinos que ela vesta enxergam o completo oposto: uma mulher forte, determinada em absorver o melhor da experiência. Do encontro dessas corres, decorre o roxo, a tonalidade do luto e escolhida para retratar, por exemplo, um instante particular em que ambos estão de costas um para o outro, trocando acusações.

Afora o ótimo uso de cores, a narrativa emprega com a mesma destreza símbolos com múltiplos significados: se de um lado a pilha de roupas sugere a desorganização do relacionamento, do outro representa como a introspecção e os ciúmes de Gustavo sufocam Melissa, e não à toa que a imagem que sucede é a de um gato preto – explicá-la, de novo, seria redundante. Da mesma forma, a mandala na forma de borboleta insinua a necessidade de metamorfose, ou seja, de reinvenção do relacionamento, ao passo que uma colcha de retalhos, retrata o mosaico de experiências (e de pessoas) sobre o qual aquele repousa – daí porque a narração in off de Melissa erra por simples capricho ao reforçar o significado que está diante de nosso olhos.

A propósito, apesar de certas passagens equivalerem a tiros na água, bonitas porém desprovidas não de conteúdo, e sim do liame narrativo por meio do qual o espectador pode interpretá-las, é de uma preciosidade a montagem que reúne centenas de fotos (seriam milhares?) em uma ambiciosa elipse narrativa que, a seu modo, é também uma colcha de retalhos. Uma que prescinde de significado senão o de ser representativa do caminho onduloso por que todos os relacionamentos percorrem ou percorrerão, resumido em flashes que passam rápidos demais para serem mais do que apenas lapsos da memória, quando, finalmente, captura a essência do romance segundo Muito Romântico: um esforço contínuo em resgatar os fragmentos, quiçá incompreensíveis, de quem um dia nós e nossxs parceirxs fomos para merecer tamanho amor.


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