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Crítica | mãe!

mãe!

121 minutos

A obsessão é a chama que inflama o processo criativo do diretor e roteirista Darren Aronofsky (de “O Lutador”, “Cisne Negro” e “Noé”, para mencionar os mais recentes). Suas tramas metafóricas e concisas são o palco perfeito para discutir até onde seus personagens estão dispostos a ir em função de seus desejos, crenças ou expectativas, nem que isto os conduza à própria morte (como no caso dos dois primeiros trabalhos citados) ou à perda da humanidade (como no último). “mãe!” não foge disto, mergulhando de cabeça na simbologia da narrativa, em detrimento do desenrolar tradicional e mais facilmente digerido, razão por que é bastante compreensível a frustração de uma parte do público que saí do cinema perplexo com o bombardeio de questionamentos e estímulos sensoriais, porém insatisfeito com a (aparente) ausência de respostas ou explicações.

As interrogações pipocam desde a cena inicial, em que uma mulher consumida em chamas encara o espectador, para, em seguida, o Poeta (Bardem), de posse do que parece ser um cristal, “ressuscitar” a casa onde habita, introduzindo luz e criando vida, particularmente a de Verônica (Law). Certo mesmo é apenas a rotina do casal, em que o Poeta, padecendo de bloqueio de escrita, enclausura-se em um quarto à espera de inspiração, ao passo que Verônica atenta-se aos afazeres domésticos e às reformas do lar, que já foi destruído por um incêndio, criando um elo com a cena inicial portanto. A chegada de estranhos (Harris e Pfeiffer) ameaça aquela idílica existência, ao mesmo tempo em que profana a santidade daquela casa imaculada, desrespeitando as regras de convivência e abusando da cordialidade dos anfitriões de maneiras não previsíveis.

Atônita e estarrecida com o comportamento indigno dos hóspedes, Verônica suplica ao Poeta que os expulse, mas, para sua surpresa, a presença daquelas pessoas que apreciam sua obra refresca o ego do patriarca, exageradamente acolhedor e consolador, mesmo que isto implique na destruição de tudo que precisou reconstruir. Para retratar este terror psicológico, Darren Aronofsky mantém a câmera incomodamente colada ao rosto de Verônica, capturando as mínimas nuances da atuação passiva e irrepreensível de Jennifer Lawrence (desde “Jogos Vorazes”, a atriz vivia mais do renome construído do que de performances desafiadoras) e nos tornando cúmplices de seu ponto de vista sacro. A falta de profundidade de campo ratifica seu desejo em permanecer a sós com o Poeta, ao passo que a fotografia de Matthew Libatique emprega o grão mais grosso do 16 mm a fim de conferir tons crus e brutos à textura narrativa.

Já as cores (ou a ausência delas) também desempenham papel importante, ainda que mais evidente: Verônica utiliza figurinos brancos e puros, enquanto os visitantes, o preto ímpio ou cores escuras com idêntico significado. Enquanto isso, os tons da narrativa são desbotados, exceto o vermelho sangue – cujo significado dispensa comentários – e o amarelo dourado, cor do tônico que ela mantém guardado como remédio, e cujo conteúdo permanece um mistério deixado à interpretação do público.

Como, a rigor, todo o restante do que está no roteiro de Darren Aronofsky – o isqueiro, o assassinato do irmão, a invasão do terceiro ato etc –, que, debaixo da história de opressão da figura materna ao alvedrio do humor do patriarca e dos visitantes / invasores, semelhante a “O Bebê de Rosemary”, mantém uma estreita sintonia com o texto bíblico, estruturado, inclusive, da mesma forma. Assim, “mãe!” desponta como é um thriller religioso e uma declaração amorosa às mães (por mais doentio que possa parecer à primeira vista), pois, mesmo que o homem possa destruir o que o amor materno tão zelosamente construiu, a onipotência deste rende até mesmo a vontade do criador e é peça-chave para a própria vida ..

… além de ser o insumo para uma obra-prima enigmática, torturante e dolorida. Até agora, o melhor filme do ano.

A partir de agora, discuto minha interpretação da obra nos tópicos abaixo. Para quem ainda não assistiu ao filme, recomendo retornar ao texto apenas após de fazê-lo, pois, além deste ponto, um céu de spoilers lhe espera.

O Velho Testamento – Do Gênese à Concepção

Como ponto de partida, a narrativa associa o Poeta a Deus e Verônica a Maria, conclusão instintiva até para quem não é cristão. Em mãe!, o Deus de Aronofsky é o autor torturado pela vaidade, cego diante da adoração ensandecida de “fãs” imperfeitos, os fiéis pecadores que desejam ser “marcados” (autógrafos) e que se enfileiram com imagens suas, como tipicamente fazem os católicos, e ainda surdo às orações sinceras de sua “deusa” (como ele apelida Verônica / Maria). Obcecado com a criação, este Deus está amaldiçoado a perpetrar indefinidamente sua obra original, atirada nas chamas do inferno que ele próprio iniciou. Para cumprir seu desígnio, Deus utiliza a materialização do amor materno, o cristal que retira do seu coração, o barro para que o oleiro prepare sua obra.

Feita esta introdução, a narrativa inicia-se no paraíso (a parede, que Maria toma por tela de pintura, exibe aparentes nuvens do céu, até serem maculadas por traços de amarelo dourado), e é neste Éden onde chegam os primeiros homens: Adão e Eva, também ignorantes ao propósito da vida senão adorar o criador (“O que todos fazemos aqui?”, responde o Homem / Adão à pergunta de Maria). Tudo começa a desmoronar – literalmente – a partir do momento em que Eva, inspirada pela “serpente” (a criatura que sibila dentro do vaso sanitário), acompanhada de Adão, entra no quarto da criação e toca no cristal, “a maçã proibida”, destruindo-a. Não demora para que os filhos do casal, versões de Caim e Abel, invadam a propriedade e travem uma batalha mortal em que este é morto por aquele, possuído por ganância, como já dizia a Bíblia.

Sucede-se o velório, em que a descendência de Adão reúne-se, já contaminada pelo pecado original (a cena de sexo que Maria testemunha), até serem expulsos, desta vez para valer, por ela (uma recordação do livro de Êxodo e da fuga dos hebreus das mãos de Faraó). Antes de isto ocorrer, porém, Deus oferece palavras de consolo a Adão, que lhe responde com um discreto e significativo “Oh, Deus”, a pista que eu precisava para enxergar a narrativa pela lente que agora eu compartilho.

O ato encerra-se quando Deus fecunda Maria de seu Filho homem, e a não exibição do ato sexual propriamente dito é quase um piscar de olhos de Aronofsky para o mistério da gravidez da virgem.

O Novo Testamento – Da Paixão ao Apocalipse

Tal como na Bíblia, Maria adota a passividade como comportamento determinante, embora não exclusivo, certa de que a vontade do Criador deve ser prontamente atendida, mesmo que esta vá de encontro a sua. Ela é uma mãe apaixonada e ciumenta, primeiro pela casa, seu ventre e extensão do corpo; em seguida, por seu Filho, que não cede sequer ao Pai, à espera paciente para “roubá-lo” e oferecê-lo em sacrifício aos ímpios que tumultuaram seu lar. Maria, motivo de debates ideológicos entre os católicos e os protestantes, sofre, na própria pele, a indiferença e os golpes e pontapés desferidos com cólera pelos homens, em alusão a forma com que muitas denominações cristãs tratam sua imagem católica. Nenhum deles sabe a dor que é ter seu filho arrancado e morto diante de seus próprios filhos quando um ser, onipotente, poderia salvá-lo. Apenas Eva!

O simbolismo religioso da narrativa está mais evidenciado na segunda metade: “O que é meu é seu”, “Não abandonei você”, “Precisamos perdoá-los” e “Eles entenderam tudo, mas cada um sente do seu jeito” são as respostas ocas de Deus a Maria, a única a desmascará-lo pelo que Ele é, em uma frase seca e dura: “É apenas sobre você”. O mais intrigante nisto é a autocrítica de Deus, consciente de suas falhas mas abraçado à singularidade de sua existência, presente na confissão “Eu sou o que eu sou”.

A partir de então, o lar prístino transforma-se na versão literal do inferno de Dante, com os piores tipos de crimes sendo cometidos a olhos vistos, provocados pela imperfeição da criatura. Enquanto isso, nasce a religião através de profetas, padres ou pastores que presidem celebrações e até impõem cinzas na testa dos fiéis (a Quarta-Feira de cinzas); ocorre a paixão do Filho único, através das mãos daqueles que posteriormente comungarão do seu corpo (os atos de canibalismo); as feridas da casa assumem a forma das chagas de Cristo na cruz e muito mais que pode enxergado pela alegoria que é.

Essa aberração agonizante somente chega ao fim depois que Maria incendeia a casa e a si mesma com chamas destruidoras e purificadoras desencadeadas pelo isqueiro trazido por Adão (a humanidade vítima de si mesma, portanto), devolvendo o paraíso ao estágio inaugural e entregando, a Deus, seu coração para que, do amor apocalíptico, nasça uma nova humanidade.


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9 comentários em “Crítica | mãe!”

  1. Eu tinha interpretado Maria de outra forma: no começo ela seria simplesmente a Virgem Maria, depois a Maria Mae de Jesus, na hora que foi agredida representou a injustiçada Maria Madalena, e no fim ficou claro que era a Mãe Natureza, e sua casa seria o planeta, destruído pelos homens. Ou seja, o homem acaba com a natureza, invade a casa pq “Deus” diz que a casa (planeta Terra) é de todos, e aos poucos o caos acaba com a Mãe Natureza, que aí vem Deus e recomeça tudo, ja que Ele havia criado o céu, a terra e a natureza, portanto pode recomeçar tudo. Viajei demais??? De resto sua percepção foi bastante esclarecedora em vários pontos de rugas na minha testa!

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