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Eu, Tonya

Eu, Tonya

119 minutos

Antes mesmo de ser condenada por planejar o ataque contra a colega de esporte, Nancy Kerrigan, supostamente na expectativa de ser convocada pela seleção olímpica norte-americana que disputaria as Olimpíadas de inverno, a patinadora artística Tonya Harding já era uma persona non grata no esporte por não se encaixar no perfil delicado e requintado exigido. Não importa que ela tenha sido a primeira atleta norte-americana a realiza o salto ‘triplo axel’. Isto não apagaria o fato de ser white trash, termo depreciativo para se referir a brancos pobres e sem escolaridade, e o figurino e maquiagem, ditos de mau-gosto, usados durante suas performances, ou mesmo a seleção musical muito longe do clássico. Nada disso deveria interferir no reconhecimento de uma atleta talentosa que, desde os 3 anos, já era uma vencedora; quando não, deveria exonerá-la, ante a violência física e psicológica que sofreu da mãe, LaVona, e do marido, Jeff. Assim, ‘Eu, Tonya‘, co-produzido e estrelado por Margot Robbie, cuida de retratá-la de modo mais favorável do que fez a imprensa ao longo dos anos, mesmo sabendo da impossibilidade de retratar a verdade.

Por isso que o roteiro escrito por Steven Rogers, também co-produtor e autor de ‘Lado a Lado‘ e ‘P. S. Eu Te Amo‘, reconhece a importância de dar voz a LaVona (Janney), Jeff (Stan), Diane (Nicholson), Shawn (Hauser) – note que este, em um fita policial – e até Martin (Cannavale), repórter que sequer participa da ação diretamente. Todos eles contribuem para a formação da história, ao menos com a oportunidade de contraditar e esclarecer os apontamentos feitos por Tonya, finalmente a autora da própria história, na infância e adolescência escrita por LaVona e, após, por Jeff. Assim, parte do mérito da narrativa reside na estrutura do roteiro indicado ao Oscar, que adota a perspectiva conceitual de ‘Rashomon‘, com a intenção de enfatizar a maleabilidade do que é a verdade dos fatos. Algo que jamais saberemos inteiramente, quiçá, nem Tonya.

Por causa disto que a opção pelo humor negro ácido e cínico calha à narrativa, naquele que é o melhor trabalho de Craig Gillespie (dos bons ‘Horas Decisivas‘, ‘A Garota Ideal‘ e ‘Arremesso de Ouro‘). A sensação é a de que o diretor incorporou a veia tragicômica de David O. Russell que, por sua vez, inspira-se em Martin Scorsese, dado a maneira como a violência é introduzida, às vezes como nota para destacar a surrealidade da situação (LaVona arremessa uma faca contra Tonya… e acerta!; em outro momento, empurra-a da cadeira), embora nunca atenuada ou desprezada e sempre revoltante (se você não sentir raiva de Sebastian Stan por ele ser um panaca atrapalhado no resto do tempo, você tem problemas!). A violência doméstica é objeto de uma crítica dura feita através da metalinguagem, com a quebra da quarta parede: é perfeitamente possível conceber por que, mesmo tendo estilhaçado um espelho com o rosto após um empurrão do marido obsessivo e de quase ter morrido por um disparo que ricocheteou e passou de raspão do seu rosto, Tonya ainda permanece casada, dando roupagem de amor às agressões, pois somente aprendeu isto com a mãe.

Por falar nela, Allison Janney cria uma personagem tão desprezível e detestável quanto o marido abusivo, ainda que mais amarga e complexa do que este. E o fato de as vezes acreditarmos que toda aquela monstruosidade encontrava raiz em alguma espécie de amor materno subvertido apenas advoga em favor da atriz, que não oferece justificativa fácil para seu comportamento senão a necessidade de estar debaixo dos holofotes de alguma maneira (é bastante reveladora a menção dela sobre o encerramento de sua linha narrativa). Já Margot Robbie cria uma fera ambiciosa e determinada a vencer, a despeito de todas as adversidades enfrentadas, ciente de quão diferente seria sua vida caso houvesse sido criada em um lar amoroso e sem esquecer de conferir sensibilidade a passagens emocionantes, como aquela em que enxerga, no espelho, não a autêntica Tonya, e sim outra, exageradamente maquiada e dessintonizada da mulher forte e falastrona que havíamos conhecido.

Atuações intensas e passionais apimentadas pela montagem de Tatiana S. Riegel (colabora habitual do diretor), hábil em manusear a linha do tempo para fins cômicos: aqui, regressa dois meses justo após Tonya afirmar não ser culpa dela o desempenho aquém do esperado nas competições; ali, vai e vem no tempo momentos antes de Shawn (Hauser, um daqueles personagens que fariam os irmãos Coen tremerem de inveja). Tatiana também é virtuosa no plano sem cortes aparentes em que múltiplos Jeff sofrem com o abandono e na fusão durante as cenas no ringue de patinação, combinando os planos abertos realizados por dublês e os planos fechados de Margot Robbie. Aqui, há que se destacar o esforço da equipe de efeitos especiais, em sobrepor, digitalmente, o rosto da atriz no da dublê, mas por seus deméritos, dada a artificialidade de certas passagens.

Ame-a ou odeie-a, Tonya Harding desenvolveu os meios, nem sempre os mais polidos, para sobreviver dentro do ambiente tóxico de agressões, abusos e preconceito, e mesmo que você opte por integrar o segundo grupo, ao menos deve considerar o quanto a patinação artística perdeu sentenciando-a a não pôr em prática seu dom. Preferiu vê-la como um saco de pancadas para o deleite de marmanjos repulsivos do que como o anjo que dançava piruetas no ar. E isto, infelizmente, revela muito sobre como a sociedade enxerga, até hoje, as mulheres.


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1 comentário em “Eu, Tonya”

  1. Avatar
    Simone Mires

    Ao assistir “Eu, Tonya” é preciso saber: estamos diante de uma história real, quase que inacreditável. Fato. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que é cinema, então, coloque-se alguns poréns por aí. Quando leio que um filme será baseado em fatos reais, automaticamente chama a minha atenção, adoro ver como os adaptam para a tela grande. Tambem recomendo assistir Dunkirk, adorei este filme, é um dos melhores filmes baseadas em fatos reais 2017.A história é impactante, sempre falei que a realidade supera a ficção. É interessante ver um filme que está baseado em fatos reais, acho que são as melhores historias, porque não necessita da ficção para fazer uma boa produção.

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