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O Farol

O Farol

109 minutos

Um crítico de cinema sempre bate a cabeça na parede quando receia ser incapaz de colocar, em palavras, os sentimentos provocados por uma narrativa, no caso, este segundo trabalho do diretor Robert Eggers (de “A Bruxa”). Não que discutir os aspectos técnicos e narrativos de “O Farol” seja difícil, contudo é improvável que eu consiga passar adiante a sensação de isolamento, agonia e desconforto perceptíveis desde a escolha da razão de aspecto, leia-se o tamanho da tela, para 1.17:1 (a título de comparação, o formato televiso convencional é de 1.33:1; já o formato cinematográfico padrão, 1.77:1). A decisão não só acena às influências do cinema alemão mudo expressionista do começo do século passado – de “O Gabinete do Dr. Caligari” e “Nosferatu” – mas revela a claustrofobia de estar isolado na companhia de pensamentos e arrependimentos quando não existe forma de penitência para acalmá-los, só loucura.

O roteiro, escrito por Robert com a colaboração de seu irmão, Max, acompanha a chegada dos faroleiros Thomas Wake (Dafoe) e Ephraim Winslow (Pattinson) a fim de administrar a instalação pelo período de quatro semanas, até serem substituídos por outros plantonistas. Logo na primeira noite, entretanto, o experiente Thomas revela ao novato Ephraim não ter desejo de revezar seus turnos no farol (“a luz é minha”, afirma categoricamente), deixando a cargo do colega ser uma espécie de zelador, responsável pelas atividades de manutenção e conservação (limpeza do alojamento, desinfecção da cisterna, lubrificação das engrenagens etc). Embora relute, Ephraim acolhe a ordem e desempenha suas atividades da maneira que pode, sendo frequentemente criticado por seu alegado desempenho insatisfatório, transcrito no diário mantido numa cômoda trancada. Não demora para que o isolamento comece a pregar peças na cabeça de Ephraim que, ainda por cima, penaliza-se por um evento havido no emprego passado.

A busca pela luz é a metáfora do desejo dos homens de ter seus pecados expiados, os quais, sem isto, permanecem na escuridão, vagando erraticamente sem razão para não tropeçar na espiral da loucura – representada pela escadaria que dá acesso ao farol. É por isto que, assim que chega no quarto, uma coluna tapa a luz solar que penetraria no quatro, posicionando-se de frente à câmera e representando, ainda, a separação visual dos personagens centrais. Que não poderiam ser mais diferentes do que são Willem Dafoe e Robert Pattinson, ambos em atuações incrivelmente intensas. O primeiro pela repugnância incitada a cada gesto; o outro, pelo descontrole emocional que começa a se manifestar irreversivelmente. Quanto mais Thomas afasta Ephraim da luz, mais este se perde dentro de si, e o ‘assédio’ de uma gaivota – alegadamente, um animal que hospedaria o espírito do marinheiro que já partiu – termina por desencadear, metaforicamente, a mudança dos ventos que transformarão os homens em maus.

Robert Eggers é inteligente em como ilustra a frustração de Ephraim a partir do caminho que precisa realizar, diariamente, a fim de conduzir carvão à fornalha que abastece a luz do farol: uma subida íngreme e pedregosa, mais prejudicada pelo chegada de uma tempestade. Enquanto isso, a relação entre os personagens começa a sofrer interferência do álcool e, na falta deste, do óleo lubrificante do farol. A masculinidade tóxica está evidenciada, mesmo que paralelamente, a partir da imagem do farol que simboliza, antes de tudo, um elemento fálico.

Enquanto isso, as opções de enquadramento não poderiam ser melhores, como uma em que a sombra de Robert Pattinson parece engolir o quarto para si, ou mesmo o close de seu rosto com aplicação do efeito negativo. A fotografia de Jarin Blaschke, aliás, é a minha primeira e única opção aos prêmios da categoria, reproduzindo um preto e branco clássico e com profundidade ao invés de ser chapado, com especial ênfase às tonalidades de escuridão e as sombras que perseguem o protagonista como se fosse sua implacável consciência. Uma determinada sequência com Willem Dafoe figura como a minha favorita, ao enquadrá-lo de baixo para cima e com um jogo de luzes que lhe confere uma aparência assustadora.

Antes disto, porém, a narrativa já havia descortinado seu objetivo: a mistura de literalidade e metáfora através do ponto de vista não-confiável de alguém desequilibrado e desprovido da capacidade de discernir fato e imaginação. Você pode enxergar como quiser, de maneira direta, simbólica, especialmente após descobrirmos o nome verdadeiro de um certo sujeito, ou um misto das duas coisas, para isto, no entanto, precisarei tocar em spoilers. Então, esteja alerta que no próximo parágrafo discutirei aspectos centrais.

E o primeiro deles é a presença de uma personagem mitológica, a sereia, que diferente de Ariel, é uma criatura marinha que enfeitiçava os marinheiros, levando-os, gradativamente, à loucura na forma do afogamento para serem devorados. É exatamente isto o que acontece com Ephraim, digo, Thomas Howard, ao encontrar o amuleto de sereia no forro da cama e sonhar estar se afogando quando encontra uma sereia surgindo detrás de toras de madeira. Estas, a propósito, representam a culpa que Thomas sente por não haver salvado seu colega, sendo perseguido por esta lembrança e, também, pela luxúria provocada pelo isolamento. O fato de ambos os personagens terem o mesmo nome – alusivo ainda à protagonista Tomasin de “A Bruxa” –  revela como podem ser faces da mesma moeda (duplos, portanto), criando a sensação até de que o próprio farol pode não ser real, e sim a maneira com que Thomas Howard encontrou para lidar com a própria culpa: a busca de uma luz inacessível e cercada de misticismo.

Ao abraçar o incerto em vez de uma resposta unívoca, preferindo investir na atmosfera do que no resultado imediato, “O Farol” é a prova incontestável da capacidade de Robert Eggers inspiração a discussão de temas e interpretações enquanto realiza o melhor filme de terror deste ano.

Crítica publicada durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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