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Editorial | A Crítica é Subjetiva, sim!

Esta semana, no meu perfil do Instagram (@cinemacomcritica), um leitor comentou haver detestado a minha crítica de Passageiros e utilizou o argumento de que o texto “restringe-se ao ponto de vista, levando em conta os valores da pessoa que escreveu”. Respeitado o comentário do leitor, de que discordo veementemente a ponto de escrever este editorial, aproveito a oportunidade para discutirmos a natureza do texto crítico e, adianto, não ser jornalístico ou científico, nem tampouco impessoal ou objetivo. Peço antes um pouco de paciência para contextualizar o caso (ou causo): no breve comentário que fiz no Instagram – a crítica do filme está aqui – afirmei o seguinte com as devidas supressões: “Jim deliberadamente desperta a escritora Aurora, por quem estava ‘apaixonado’, da hiberanção (…) Jim, versão futurista do termo stalker, rouba de Aurora seu futuro, esperança, planos, sonhos e vida para… fazer-lhe companhia! Não existe nada mais sexista do que isto e, enquanto esconde a verdade, a conquista a ponto de tornar-se imprescindível (…) Mas a narrativa o trata como vítima não como o vilão, alguém por quem deveríamos sentir pena, não repulsa (…)”.

Agora que estamos na mesma página, podemos começar a conversar.

Antes, quem é o crítico de arte? Um sujeito que conjuga, em regra, as qualificações a seguir: a) deve ser um amante da arte que critica, e seria absurdo investir horas diárias preciosas para consumir aquilo por que sequer tem o paladar – na minha maneira de aludir a Anton Ego, o crítico gastronômico mal-compreendido de Ratatouille; b) deve ser um estudante dedicado da linguagem artística, sua evolução formal e temática no curso da história – inclusive as regras, os movimentos, os subgêneros etc – e seu cotidiano; e c) deve ser um escritor ou orador – não menosprezo a crítica em vídeo – capaz de transmitir a opinião produzida pelo consumo da arte através de argumentos sólidos escorados na linguagem e de defendê-los, se julgar necessário. Ora, seria errôneo supor que existe um gabarito artístico em que o crítico avalia os elementos integrantes da arte – no cinema, p. ex., a direção, o roteiro, a fotografia, a montagem, o design de produção, as atuações etc – e obtém a avaliação na forma de estrelinhas, bonequinhos ou mesmo notas precisas, como 6.8 ou 8.3 – deve ser maluco quem faz isso. O que o crítico faz – ou deveria fazer – foge disso quase como o diabo foge da cruz.

Enfim, o crítico é um indivíduo comum. Uma construção sociocultural, não desnuda de anseios, emoções e humanidade, e cuja opinião reflete a maneira individual com que enxerga o mundo, através do escrutínio da arte. Retirar esta bagagem de suas costas seria arrancar, do texto crítico, aquilo que o torna único, e resumiria a arte à opiniões frias, desapaixonadas, rigorosamente quadradas e matemáticas. É lógico então que, sem a componente subjetiva, e supondo que todos os críticos detivessem o mesmo conhecimento cinematográfico, a arte seria algo estático, morto, imutável, sendo que, é através da crítica e de interpretações distintas e fundamentadas, que a a arte mantém-se viva. E o fato de até hoje discutirmos, p. ex., os símbolos de Solaris, lançado há mais de 50 anos, significa que estamos fazendo um bom trabalho.

O que aquele leitor lá do primeiro parágrafo não sabe é que a individualidade no texto crítico produz debates fascinantes: a) o histórico, feito entre os críticos de hoje e os de outroara, e basta recordar que os clássicos PsicoseO Iluminado, Bonnie & Clyde: Uma Rajada de Balas dentre outros foram duramente criticados quando do lançamento; b) o geográfico, decorrente de críticos de diferentes nacionalidades ou regiões, de modo que o conteúdo da arte aqui pode não ser interessante para quem esteja ali acolá; c) o social, e não existe duvida de que a raça, etnia, idade, classe social, opção política e orientação sexual do crítico alteram a percepção da arte em casos específicos, pois o torna apto a enxergar e identificar situações que outros críticos não conseguiriam.

Portanto, trazer o eu-escritor para dentro do texto crítico não subverte a análise da arte. Pelo contrário, a robustece, oferece opiniões e interpretações que não poderiam advir de terceiro – mais um motivo porque o plágio é o maior crime que pode ser cometido para quem vive da escrita -, sobretudo se estiver amparada na linguagem artística. Isto porque o propósito da crítica não é noticiar (o texto jornalístico) nem formular hipóteses (o texto científico), e sim de julgar os méritos artísticos de uma obra de arte através do olhar de um espectador qualificado tanto por seu amor à arte quanto pela dedicação com que a estuda e interpreta o mundo ao seu redor, afinal, a arte não sobrevive descontextualizada do mundo em que fora criada. Seria tolice imaginar que existe razão de ser da arte senão a de traduzir o mundo ao redor.

Assim, refutando o leitor, se eu despisse minha análise do meu ponto de vista e dos meus valores humanos, privaria o texto crítico da razão de existir e não demoraria para que eu perdesse o interesse em escrever; estariam podando a minha raiz, e não demoraria para que o restante da árvore apodrecesse com o tempo. É por isto que identifiquei machismo ou sexismo em Passageiros, não apenas do personagem – e não haveria problema dele sê-lo -, mas da narrativa, aí que está o ponto de reprovabilidade: a trama, através da figura de uma autoridade, dá tapinhas nos ombros de Jim e ainda puxa a orelha de Aurora, dizendo que quem se afoga acaba puxando outro pela perna. Que desculpa canalha para dizer que Aurora deve aceitar o destino decidido por Jim, jogando no espaço a vida inteira que havia planejado intensamente para si. E isso me incomoda enormemente, por habitarmos uma sociedade machista que exige mudança já, tanto é verdade que não são todos os que assistem a Passageiros que identificam o sexismo que apontei.

Em síntese, enquanto sentir prazer em discutir aspectos sociais, políticos e culturais inspirados pelo filme sobre o qual escrevo, continuarei a trazer o Márcio Sallem para dentro das críticas, não somente no estilo da escrita – que deve ser mais sofisticada, admito -, mas sobretudo no que a arte apela para mim. Se isto divergir da opinião de terceiros, é melhor ainda, pois isto nos dará oportunidade de conflito, debate e construção e desconstrução de ideias.

Dessa maneira, a crítica terá atingido sua razão de ser.

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1 comentário em “Editorial | A Crítica é Subjetiva, sim!”

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Quem Sou Eu

Sou Márcio Sallem, crítico de cinema desde fevereiro

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