Emprestando vida e alma à figura paterna, Javier Bardem (indicado ao Oscar) destrói como Úxbal, um homem cujo único objetivo é garantir a segurança e felicidade dos filhos. Em uma Espanha marginalizada, suja e violenta, Úxbal explora imigrantes africanos ilegais e intermedeia a contratação de mão de obra chinesa. Diagnosticado com câncer de próstata – a reação de Bardem ao receber a notícia de que terá 2 meses a mais de vida basta para arrebatar o espectador -, Úxbal também é um médium com a habilidade de se comunicar com os mortos. Algo que além de criar belas rimas visuais, funciona como uma forma de flertar com o cinema de terror.
De maneira geral, o trabalho de direção de Iñarritu é irretocável, incluindo a magnífica direção de atores e a elegância com que concebe e enxerga a miséria em inúmeras formas. Hábil em costurar múltiplas narrativas (sua especialidade), Iñarritu evita as coincidências que prejudicaram e conecta os coadjuvantes de uma forma ou de outra a Úxbal: seu irmão Tito, sua ex-esposa Marambra, os imigrantes senegalenses Ige e Ekweme e os chineses. E à medida em que a vida de Úxbal desmorona completamente, a das pessoas ligadas a ela também começa a ruir.
Sugando a beleza e vida dos elementos que compõem a cena, a direção de arte de Marina Pozanco e Brigitte Broch investe na emblemática infiltração no teto do apartamento de Úxbal que reflete a metástase do câncer. Já o interior da delegacia revela na pintura desgastada e nos móveis destruídos a pobreza espanhola. Da mesma forma, a fotografia de Rodrigo Pietro apresenta ambientes mal iluminados, sufocantes e apertados que, mesmo banhados em cores quentes, jamais transmitem a ilusão de paz (novamente, isto traduz a beleza do título).
Como Ana, filha de Úxbal, determina certo momento ao soletrar “como ela ouve”, a beleza cumpre um papel subjetivo, e aos olhos da garotinha pode ser apenas uma viagem em família à neve. Pena que, por mais poética a beleza enxergada por Ana, ela não compensa a carga dramática, como a exumação de um personagem ou o enquadramento de um homem utilizando uma fralda geriátrica, retrato da impotência dele diante da situação (e o que afirmar da bela rima temática ao ver pai e filho vivenciando problemas urinários).
Diante do investimento emocional investido em Biutiful, é triste observar personagens humanos sofrerem tanto. A ironia é que esta é a realidade de um mundo cruel em que a maioria apenas sobrevive e a felicidade é algo tão efêmero como uma humilde festa de aniversário. A impassividade do espectador diante da miséria é representada categoricamente ao enxergarmos um Úxbal retraído no canto inferior esquerdo da tela e banhado em uma fotografia deprimente.
Retratando o desejo de Úxbal de não vencer a doença, mas apenas “não ser esquecido” por seus filhos, o protagonista não mede esforços para auxiliar os filhos a enxergar a beleza (agora sem itálico), nem que esta seja surja apenas na imaginação dos pequenos. Uma bela homenagem de Iñarritu cujo enorme coração, escondido atrás de uma carcaça podre, exige a entrega e identificação total do espectador.
Avaliação: 5 estrelas em 5.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Crítica | Biutiful”
"Biutiful" é um filme que comove, dói, perturba. Concordo exatamente com o "formidável e poderoso". Excelente filme e ótima crítica! 🙂
Tem filmes que são CRÚS demais! Este é um.