Suzanne é um mero adorno na residência e na família burguesa dos Pujol. Seu marido, Robert, a trai frequentemente e questiona, inclusive, se ela tem uma opinião. Seus filhos, Joelle e Laurent, a visitam com frequência e não reprovam a acomodação da mãe. Ela é um potiche, só um troféu, e o diretor François Ozon sabiamente representa este elemento comparando-a às princesas do universo Disney, otimistas, sorridentes e amantes da natureza e de sua condição. Aos poucos, porém, Suzanne desmonta a imagem da dona de casa certinha e assume a presidência da empresa familiar, pondo fim aos ânimos acirrados dos empregados grevistas.
Marcando uma grande atuação da quase septuagenária Catherine Deneuve, a atriz equilibra a doçura, bom humor e mistério das duas fases vividas por Suzanne na fábula: a de mãe bondosa, esposa servil e dona de casa dedicada e a de mulher contemporânea, consciente de sua capacidade de superação dos preconceitos. Auxiliada por um elenco consistente composto por Fabrice Luchini, que com seu overacting desmonta a antipatia que podíamos sentir por seu personagem.
Bem humorado nas frases de efeito dos personagens e na inspirada montagem de Laure Gardette que recorre a cortes secos, seja quando Suzanne pede alguns minutos para se arrumar ou mesmo quando ela sugere ao marido acompanhar a programação vespertina da televisão, Potiche eventualmente apresenta pequenas falhas no tom expositivo e na trajetória quase surreal de Suzanne. A direção de François Ozon tem bom gosto em jamais revelar a sexualidade de um certo personagem e em não apresentar o marido de Joelle ou a nova namorada de Laurent, permitindo que aquele microuniverso familiar seja o nosso único contato com a divertida e agradável fábula contada.
02) O Pai dos Meus Filhos (Le Père de mes Enfants, 2009, França). Direção: Mia Hansen-Løve. Roteiro: Mia Hansen-Løve. Elenco: Louis-Do de Lencquesaing, Chiara Caselli, Eric Elmosnino. Duração: 110 minutos. Cotação: 4 estrelas em 5.
A naturalidade e honestidade com que acompanhamos o dia-a-dia do produtor de cinema Grégoire Canvel é um dos pontos mais altos deste grande drama. Amante da sétima arte, pai carinhoso e afetuoso de três belas filhas e amante incondicional, Grégoire também está atolado em dívidas, com baixa capacidade administrativa e gerencial. Tornado mais real em instante banais, como ao ser flagrado em uma blitz de trânsito e ter a licença de motorista suspensa, o roteiro de Mia Hansen-Løve, que também dirige, é dedicado a acompanhar sem maniqueísmo e superficialidade um homem contornando as dificuldades diárias e financeiras de sua profissão, enquanto batalha por um futuro melhor para si e sua família.
Fugindo de esteriótipos, a diretora Mia Hansen-Løve desenvolve personagens realistas e interessantes, e mesmo os credores de Grégoire surgem como figuras incrivelmente humanas e tridimensionais, como o sereno dono do laboratório que, atribuindo a cobrança da dívida à necessidade de bancar seus funcionários, evita as traquinagens de Hollywood – imagino que algum grande estúdio certamente o apresentaria fumando um cigarro e disparando gritos verborrágicos cobrando incessantemente o dinheiro devido. Mas é uma decisão ao longo da história e que muda totalmente a feição da narrativa, a responsável por alçar este trabalho a um patamar mais elevado.
Evitando um final quadradinho ao estilo, “estamos todos bem”, O Pai dos meus Filhos é tão imprevisível na sua rigidez cotidiana quanto é satisfatório.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.