30) Cut (Idem, Japão/França/Estados Unidos/Coréia do Sul/Turquia, 2011). Direção: Amir Naderi. Roteiro: Amir Naderi, Abou Farman. Elenco: Hidetoshi Nishijima, Takako Tokiwa, Takashi Sasano. Duração: 132 minutos.
Cut é uma experiência inusitada que provocará reações de amor e ódio em igual proporção. Trata-se de uma espécie de manifesto do cinema de arte, combinado com uma versão doentia de
Clube da Luta e a precisão de um diretor apaixonado por sua arte e que, como grande cinéfilo, é apaixonado por elaborar listas dos melhores filmes que já assistiu (calma, chegaremos lá).
Em linhas gerais, Cut é a história de Shuji (Nishijima), um diretor fracassado, que semanalmente apresenta películas antigas de clássicos da sétima arte em um clube do filme (Cinéfilos de Tóquio). Apaixonado, imediatamente notam-se os inúmeros retratos e recortes de diretores como Orson Welles, Jean-Luc Godard, Stanley Kubrick, ou nas sequências em preto e branco que visita os principais realizadores do seu país, sobretudo, Akira Kurosawa ou Yasujiro Ozu. Em função desta enorme paixão, Shuji corre as ruas de Tóquio carregando um mega-fone, amaldiçoando o cinema de entretenimento, condenando as grandes cadeias de exibição e convocando para um retorno à arte, ao cinema no seu mais puro estado.
Um dia, a máfia japonesa afirma que o seu irmão morto deixou uma dívida de mais de 12 milhões de ienes que deve ser paga em duas semanas. Incapaz de levantar este montante de dinheiro, Shuji resolve transformar-se em saco de pancadas humano em uma academia de boxe, cobrando de seus agressores pelos golpes desferidos. Conceitualmente, o roteiro recorre à violência, ao flagelo e ao auto-sacrifício como armas de Shuji para criticar o cinema hodierno das bandas norte-americanas. Como? Ao abraçar o caráter repetitivo nos sofrimentos e martírios sofridos por Shuji, o diretor Amir Naderi conscientemente critica a prostitução da sétima arte e à venda de valores por grandes somas nas bilheterias.
Além disso, apesar de exaustivo e tedioso acompanhar Shuji apanhando seguidamente, repetindo o seu discurso pró-arte e finalmente, assistindo machucado a uma projeção de algum clássico, é interessante notar que isto tem o propósito narrativo de questionar ao espectador o porquê deste assistir repetidamente ao mesmo filme, apenas mudando os personagens (no caso, os agressores de Shuji), ou os cenários (desta vez, as exibições dos filmes). Porém, existe um tom pretensioso na direção de Naderi que afasta aqueles que deveria converter, o público dos grandes blockbusters, das comédias românticas ou das infinitas continuações de terror. Não obstante, essa pretensão também surge no auto-retrato que o diretor Amir Naderi elabora de si mesmo.
Apresentando uma narrativa meticulosamente pensada para chocar (o que faz, as vezes, negativamente), Naderi reservou uma surpresa nos 30 minutos finais diferente de muito do que já foi visto no cinema, envolvendo uma quantidade centenária de golpes, filmes despejados na tela e um novo significado às últimas palavras do Cidadão Kane, Rosebud.
Defeituoso como é, Cut é obrigatório para cinéfilos apaixonados por algo inédito e original no cinema, independentemente, do que julgar após a sessão. Pena que, no processo, Naderi exclui todos os demais espectadores.
29) Great Kills Road (Idem, Estados Unidos/Holanda, 2009). Direção: Tjebbo Penning. Roteiro: Marcel Faber, Tjebbo Penning. Elenco: Marcel Faber, Jillian Crane, Jess Osuna. Duração: 78 minutos.
Dificilmente, assistirei outro filme pior que este Great Kills Road nesta edição da Mostra, e o seu próprio ano de lançamento intrigou-me a questionar o porquê de sua presença no rol de produção integrantes. A começar pela história rasa e batida de Maas de Boer (Faber), um holandês, pai de um garoto deficiente, e que munido de um cartão postal de Nova York, parte em busca da mãe do menino, Sarah (Crane).
Preguiçoso, relaxado e descompromissado com o menor grau de estética narrativa e cinematográfica, Tjebbo Penning limita-se a acompanhar, com um interesse documental, a busca de Maas por Sarah, seja foleando uma lista telefônica, ou contratando um detetive, ou caçando uma briga, bêbado, com um transeunte. Tudo isto, porém, sem o rigor necessário para compor um filme, como se perambular por Nova York fosse motivo suficiente para produzir o longa (ou seja, minhas experiências na Mostra renderiam um Oscar por comparação).
Adicionando pequenos trechos em que Maas narra aquilo que esteve diante de nossos olhos ou busca em palavras redimir-se com seu filho nas preces comunicadas em voice over, a montagem de Stephan Brenninkmeijer é pavorosa, e basta observar uma visita inesperada ao apartamento de Maas para confirmar isto. Para piorar, a trilha sonora de Han Otten é brega e excessivamente indie, confiando que acordes dissonantes de instrumentos diversos sejam bastante interessantes para pontuar algum momento mais dramático.
Sem mais o que falar, ao menos não abandonei a sessão, o que seria uma covardia de minha parte; o mesmo não posso dizer de Great Kills Road que intencionalmente despedaçou 80 minutos da minha vida sem qualquer retorno emocional.
Ah, minto, a raiva!
(Update: assisti um pior, Rue Huvelin, no dia 10).
28) Vida que Segue (De Leur Vivant, Bélgica, 2011). Direção: Géraldine Doignon. Roteiro: Géraldine Doignon. Elenco: Christian Crahay, Matylde Demarez, Yoann Blanc, Jean-François Rossion. Duração: 88 minutos.
Após 40 anos de união, Henri (Crahay) perdeu a sua esposa, vítima de um câncer, no triste outono belga. Antes, o casal gerenciava um pequeno hotel familiar, o qual os filhos Dominique, Ludovic e Louis decidem vender para apagar a incômoda sensação de presença da mãe nos cômodos do lugar. Basicamente, a diretora Géraldine Doignon aborda um tema exaustivamente retratado (melhor) anteriormente: a digestão do luto de um ente querido. Neste caso, Henri resiste, silenciosamente, à venda do hotel, e os seus filhos, crendo agir no interesse do pai, insistem na desfeita do imóvel.
Géraldine, no entanto, não faz muito para diferenciar Vida que Segue do joio, apesar de contar com um abordagem visual peculiar, que valoriza a perda da textura dos quadros e a insistência na ausência de foco que traduz a perda da direção de seus personagens. Apesar disto, seu trabalho é irregular, pecando no ritmo frouxo de uma história de menos de 90 minutos que parece ter mais de 3 horas, ou principalmente, na maneira com que decide atar certos elementos narrativos.
Nesse contexto, Ludovic (Blanc) encontra fitas antigas de sua infância, quando corria atrás de galinhas no quintal do hotel, que despertam o saudosismo e a imprescindibilidade do hotel. Em outro momento, Dom (Demarez) escuta os comentários do pai com a inesperada hóspede Alice (Raphaële Germser), que lançam luz em aspectos de sua vida que ela vira os olhos. Ou então, Dom descobre debaixo do papel de parede, lembranças bonitas de tempos mais felizes. Estas e outras coisas acabam transformando Vida que Segue em um dramalhão bobo que, apesar de não ser piegas, falha também ao pontuar tudo com uma trilha sonora lacrimejante.
Embora povoado por personagens complexos, generosos e carismáticos, certos elementos não se encaixam apropriadamente na narrativa, como a visita da esposa e filha de Ludovic ou a presença de Alice, um simples catalisador das emoções de Henri, retraído em relação aos filhos.
Assim, Vida que Segue lida com o luto e a dor da perda abstratamente, recordando as memórias e os porquês de familiares se amarem, e encerra igual como começou. Sentado na poltrona, ou melhor, nos degraus, do comodismo cinematográfico.
27) Adeus (Bé Omid é Didar, Irã, 2011). Direção: Mohammad Rasouluf. Roteiro: Mohammad Rasouluf. Elenco: Leyla Zareh, Fereshteh Sadre Orafaiy, Shahab Hosseini. Duração: 104 minutos.
Como as demais artes, o cinema assume eventualmente sua responsabilidade socio-política, e hoje em dia, nenhum país é melhor que o Irã para voltar as lentes das câmeras e apresentar o descomunal desrespeito aos direitos humanos e as liberdades individuais em uma sociedade patriarcalista retrógada e que esqueceu de evoluir com o restante do mundo.
Em Adeus, Noora (Zareh) é uma mulher vaidosa que não hesita de pintar as suas unhas ou de trajar roupas distintas do mórbido preto. Assim, uma das primeiras ações da mulher antes de um encontro profissional é remover o esmalte das unhas e substituir a burca azul por outra preta, mais sóbria. Advogada de direitos humanos que teve a licença revogada e casada com um jornalista que, por duas vezes, teve seu jornal fechado, Noora sente-se como “uma estrangeira em seu próprio país” e, grávida, elabora um complicado plano para fugir do Irã definitivamente.
Apresentando peculiaridades da ditadura de Mahmoud Ahmadinejad através de observações cotidianas, Noora é sentenciada a pagar uma multa por possuir uma televisão via satélite, proibida naquele país onde a desinformação é o segredo de manter o povo na pré-história da alienação. Da mesma maneira, Noora não consegue reservar um hotel para si sem a presença do marido e, para quaisquer procedimentos médicos é fundamental a assinatura desse ou uma carta de autorização de outro profissional, tornando a vida já difícil daquela mulher em um beco sem saída sufocante.
Para reproduzir em visual a situação de Noora, Rasouluf adota uma abordagem de planos muitos fechados e estáticos, no qual a mulher está enclausurada nos variados ambientes e, normalmente, interagindo com poucas pessoas, podando completamenta a sua liberdade. Combinada com a fotografia extremamente deprimente de Arastoo Givi, Rasouluf acaba sentenciando Noora a tormentos como a inspeção realizada no seu apartamento por homens do governo. Rasouluf também é habilidoso na composição dos quadros e na mise-en-scène, e um passeio de elevador ganha contornos de tortura (observe o bom uso de um espelho) assim como a já mencionada inspeção.
Vivida com uma melancólica esperança e obstinação por Leyla Zareh, é triste observar que a mulher reconhece as reduzidas chances de sucesso de sua empreitada e mesmo assim, não hesita em abraçar a única chance que possui de escapar do totalitarismo iraniano. Atormentada por causa de sua gravidez e de um certo resultado no exame de sangue, as escolhas dela tornam-se mais difíceis pela complexidade dos problemas que se abrem a ela.
Encerrando de forma angustiante, em um respirar ofegante e incômodo, Adeus transporta para a tela a sensação que o seu título não esconde e um diretor corajoso expôs sem temor.
26) Fim de Semana à Beira-Mar (Ni à Vendre Ni à Louer, França, 2011). Direção: Pascal Rabaté. Roteiro: Pascal Rabaté. Elenco: Jacques Gamblin, Marie de Medeiros, François Damiens, Dominique Pinon, Marie Kremer. Duração: 77 minutos.
Jacques Tati, com o seu personagem mais célebre, o Sr. Hurlot, estabeleceu uma comédia influenciada pela mímica, pela ingenuidade e pelo interesse com a questão estética dos ambientes e figurinos. Ele era uma espécie de Charles Chaplin francês, conferida a devida proporção, e nesse sentido, Fim de Semana à Beira-Mar é uma homenagem à comédia de Tati. Para quem nasceu ontem, existem semelhanças também com o humor de Rowan Atkinson adaptado em Mr. Bean.
Após essa contextualização, este trabalho do diretor Pascal Rabaté é uma homenagem ao inesquecivel e adorado Tati, raramente apresentando um diálogo, confiando na caracterização de personagens pitorescos e coincidências para provocar um riso descomprometido e inócuo. Dentre eles, estão: um casal no seu diminuto carro e casa, aproveitando a companhia um do outro em jogos; dois casais, vizinhos de quarto de hotel, e que trocam de maridos e esposas; um sadomasoquista amarrado em um cama de hotel; uma família disciplinada como se estivesse em um exército; etc.
Todas essas histórias entrelaçam-se por mimos do acaso e da natureza, como uma pipa perdida que arranca um crucifixo de uma moça ou uma ventania e um acidente de trânsito. Nada exatamente muito elaborado, mas privilegiando o ar despretensioso. Existe, em algum lugar, uma crítica à crise econômica, especialmente quando a cidade à beira-mar do título está vazia e as casas a vender ou a alugar. No entanto, Rabaté não se preocupa demasiadamente com este subtema, deixando-o de lado oportunamente.
Abordando os estranhos hábitos daqueles sujeitos, nos divertimos com o dono da mercearia, literalmente desenhando os códigos de barra dos produtos, ou os jovens na praia que optam por desenhos inusitados. E o que dizer do acampamento que quase lembra Dogville pelas marcações no chão?
Valendo-se de composições bastante felizes, como no funeral ou na tentativa de, escalando um monte de feno, buscar um crucifixo em um galho de árvore, Rabaté também acerta na mudança de eixo no posicionamento da câmera em determinado momento. A trilha sonora, de suma importância, e a montagem de Jean-Franços Elie, crucial para qualquer comédia, são competentes e permitem que este divertimento inofensivo ganhe vida.
Longe de ser um novo Sr. Hurlot, Fim de Semana à Beira-Mar é uma refrescante comédia, divertida e saudosista.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.