O que um matemático obcecado com os padrões do número π, quatro pessoas afundando no poço sem fim do mundo das drogas, um cientista em busca da imortalidade, um lutador decadente com o corpo maltratado de anos de vícios e uma existência desregrada, e uma bailarina perfeccionista e esquizofrênica teriam em comum no fabuloso mundo do cinema?
Personagens da riquíssima e curta filmografia de um dos cineastas norte-americanos mais brilhantes dos últimos anos, todos eles são seres trágicos, destinados a testemunhar o despedaçamento dos seus sonhos e, inexoravelmente, de si mesmos. Eles são pessoas vivendo ao extremo da sua humanidade e reduzidos a esbarrar no muro invisível que separa cada um de nós de realizações divinas. As vezes, misturados no veneno agridoce do otimismo, esses homens e mulheres são o centro das atenções de Darren Aronofsky. E muitos estranhariam a inclusão dele em uma série de artigos que começou com
Woody Allen, em detrimento de nomes estabelecidos como monstros da arte: Martin Scorcese, Steven Spielberg, Ingmar Bergman, Federico Fellini e outros. Aceito as críticas e as entendo, mas estamos falando de um alguém que não fez nada além de obras-primas nos seus 5 filmes.
Seu primeiro longa metragem foi Pi (1998), posterior a 3 curtas metragens que o cineasta realizara. Max (Sean Gullette) é um gênio da matemática que desenvolveu um supercomputador capaz de provar a chave da existência humana mediante a constante infinita π. Rapidamente, templos da cabala, analistas e tubarões de Wal Street e outros, tentarão arrancar das mãos de Max esse conhecimento. Mentalmente frágil, Max começa a apresentar sintomas de esquizofrenia – Darren sempre haveria de retornar a este tema – e mania de perseguição em um dos filmes mais sensacionais realizados com apenas US$ 60 mil dólares de amigos e colaboradores que ajudaram o cineasta. Um trunfo do cinema.
Recorrendo ao lado mais trágico das drogas, em Réquim para um Sonho (2000) Aronofsky nos convida a conhecer as consequências catastróficas do vício nas promissoras vidas de Sara (a indicada ao Oscar Ellen Burstyn), Harry (Jared Leto), Marion (Jennifer Connelly) e Tyrone (Marlon Wayans). O que começa apenas como uma diversão para os Harry, Marion e Tyrone, ou como uma forma de Sara perder peso para participar do seu programa de televisão preferido, se transforma em um difícil e incômodo pesadelo, capaz de chacoalhar as fundações do cinéfilo mais resistente.
Sonhos destruídos, projetos incompletos, a loucura apossando-se do corpo, da mente e da alma – Darren novamente preocupando-se nos efeitos existentes na nossa cabeça -, em um filme que faz jus ao adjetivo visceral. No mundo em que vivemos, não é apenas um drama obrigatório para todos nós rodeados por esse dejeto que polui as faculdades humanas, mas também é uma maneira de encontrar a humanidade no olhar desesperado de quatro vidas brutalmente interrompidas. Particularmente, é um espetáculo de Ellen Burstyn que, sujeitando-se ao método e perdendo mais de 10 quilos (Natalie Portman “sofreu” tortura parecida), consegue transformar uma solitária dona de casa em uma criatura assombrada por alucinações – e depois desse filme você pensará duas vezes antes de abrir a geladeira para pensar! Um fascinante, realisticamente pessimista e definitivo relato das drogas no cinema.
6 anos depois, eis que vem A Fonte da Vida (2006), para uns o maior fracasso do diretor, comercial e artisticamente; para mim, a história mais bonita sobre a aceitação da mortalidade como algo bom e necessário para a manutenção do ciclo da vida. A única superprodução de Darren, orçada em quase US$ 40 milhões, a narrativa atravessa passado, presente e futuro na busca de Tom (Hugh Jackman) pela almejada imortalidade consubstanciada no amor de Isabel (Rachel Weisz). Entendendo que o motor que impulsiona a humanidade a grandes conquistas é o amor, Darren descreve as conexões entre as diversas eras através de temas em comum – a árvore da vida do paraíso – e fartamente usa elipses – como os pêlos da nuca de Izzy e os cílios do tronco da árvore. O resultado é a experiência de compreensão de nossa pequenês no universo e de nossa finitude, algo que a versão zen de Tom no futuro descobrirá a borda de sua misteriosa espaçonave. Uma redoma dourada, eterno ciclo da vida e morte no vasto e desconhecido universo do amor.
O reencontro de Darren com o sucesso ocorreria em 2008 com o aclamado O Lutador, filme que devolveu o estrelato a Mickey Rourke. Neste, o diretor sabiamente confunde a vida autodestrutiva levada por seu protagonista, o lutador de luta-livre Randy the Ram, com a de seu intérprete. Ambos, anteriormente grandes estrelas nos seus ofícios, não conseguiram lidar com o estrelato e adentraram em uma vida de vícios e maltratos. Surpreendidos com uma segunda chance, ínfima é verdade, de reencontrar a paz interna, Randy e Rourke se mergem em um único ser nesse relato documental. Um salto no vazio da esperança que, otimisticamente, revela a importância de perdoar a si mesmo e olhar os anos adiante como nossa redenção.
Finalmente, muitos torceram o queixo para a investida do diretor no mundo do balé, mas como eles se enganaram. Com Cisne Negro (2010), Darren rendeu o Oscar para uma possuída Natalie Portman, que na pele da sexualmente reprimida, infantilizada e perfeccionista bailarina Nina, conquistou a crítica e o público ao se entregar à esquizofrenia plena de seu alter-ego negro. Adotando um tom similar ao de O Lutador, Aronofsky deixou-se seduzir pelo charme dos espelho, em uma menção a personalidade fraturada e retorcida de Nina, incapaz de lidar com as pressões da mãe, da rival vivida por Mila Kunis e do coreógrafo, interpretado com rigor e disciplina por Vincent Cassel. Uma aula de como se realizar o clímax de um dos melhores filmes do ano.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
5 comentários em “Grandes Diretores: Darren Aronofsky”
amei o seu texto! realmente Aronofsky é um otmio diretor.. cisne negro é um dos meus filmes favoritos e eu tambem amo 'a fonte da vida'
desses só não assisti 'pi' ainda
sou completamente fascinada pelo mundo aronofsky. e para mim, o melhor filme é sem dúvida requiem, seguido de PI, e cisne negro. é interessante ver as características do diretor em todos os filmes. adorei essa idéia de falar sobre o diretor! poderia falar sobre o lars von trier tb?
Poderia, mas o Lars tem um problema: não vi todos os seus filmes. Por exemplo, Melaconlia nem de longe senti o cheiro :/
Darren Aronofsky é realmente um diretor especial. O próoximo filme dele promete muito.
Preciso rever o Requiem para Um Sonho. Estou devendo um texto dele (e de PI) para o Cinema de Buteco. Não ouso escrever sobre Fonte da Vida… é um filme lindo demais para ficar em palavras.
Parabens pelo apanhado geral da carreira do diretor.
Ótima análise, Márcio! O Aronofsky é um daqueles diretores que procuro acompanhar cada notícia de cada novo trabalho dele prestes a sair. Lamentei muito sua saída da direção de Wolverine, um filme que tinha tudo para tornar-se uma das melhores adaptações de histórias em quadrinhos de todos os tempos nas mãos dele. Mas ainda tenho esperanças de que ele volte a flertar com o universo dos quadrinhos futuramente. Até lá aguardamos ansiosamente seu épico Noé.
E estou contigo com relação ao Fonte da Vida. O que muita gente não entendeu, na minha opinião, é que o filme trata mais da tentativa de Tom em aceitar a morte da esposa por meio do livro incompleto cuja conclusão ela deixou para ele escrever, do que uma história que deve ser interpretada objetivamente. Visto sob este viés o filme inteiro acaba sendo a tentativa desarticulada de Tom em amarrar as pontas que sua esposa criou em seu romance, e dar algum sentido a elas, ao mesmo tempo em que busca um sentido para sua busca, e para a perde que está prestes a sofrer.
Até hoje considero seu final um dos mais belos já concebidos, justamente por reproduzir visualmente uma experiência tão subjetiva quanto a epifania.