45) Frango com Ameixas (Poulet aux Prunes, França/Alemanha/Bélgica, 2011). Direção: Vincent Paronnaud, Marjane Satrapi. Roteiro: Vincent Paronnaud, Marjane Satrapi. Elenco: Mathieu Amalric, Maria de Medeiros, Golshifteh Farahani. Duração: 93 minutos.
Este novo trabalho dos diretores Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi depois do cultuado
Persepólis (cuja homenagem no nome de um cinema tem um quê de arrogância), é uma das experiências mais belas e poéticas que tive este ano. Trata-se da história do maestro Nasser Ali (Amalric), que tem o seu mais estimado bem destruído, um violino, que sequer um Stradivarius é capaz de substituir. A destruição do precioso instrumento simboliza equivale a perda no prazer de viver, remetendo a memórias que ele enterrou dentro de si e que, no decorrer da narrativa, conheceremos aos poucos.
Desde os créditos iniciais, Paronnaud e Satrapi conferem um ar lírico a esta história, utilizando recursos de linguagem cinematográfica e animação para transformar o Teerã na década de 50 em um universo místico, no qual até mesmo a existência de uma varinha mágica, ou quiça, um vizir, não seria um completo absurdo. A começar na paisagem cujos contornos suavizados provenientes de uma animação, as amarelas folhas que caem de uma árvore e o róseo do por do sol nas montanhas duelam constantemente com a pálida e triste fotografia de Christophe Beaucarne. Inevitavelmente, este representa a realidade da vida de Nasser Ali, que casou com uma mulher que não amava, Faranguisse (Medeiros), não sabe ser pai de seus dois filhos, e viu seu amores, Irâne (Farahani) e a música, perdidos definitivamente. Por outro lado, a insinuação de cores e a iluminação intensa representa memórias de uma existência feliz.
Com um fantástico trabalho de montagem de Stephane Roche, Frango com Ameixas ganha o ritmo dos versos mais fluidos, como na materialização de um vendedor de relíquias em uma fumaça de ópio, ou o sincronismo perfeito da narração com as ações encerradas por ela. Investigando o passado para desvendar a personalidade do maestro, desde uma visita ao colégio quando ele tomara a culpa por algo que seu irmão Abdi fez às severas imposições da mãe, interpretada por Isabella Rossellini para que casasse com Faranguisse, ou mesmo viajando ao futuro para exibir as inevitáveis consequências do destino de seus filhos (particularmente, a ida de Cyrus aos Estados Unidos além de arrancar risos, também age como crítica ao estilo de vida daquele país).
Compondo planos memoráveis, como aquele em que dois amantes, debaixo de uma árvore de pétalas amarelas, beijam-se no por do sol, ou quando aproximámo-nos de um almoço em família no qual Nasser Ali convenientemente está de costas, os diretores brincam com a perspectiva fílmica, apresentando o maestro sendo seduzido pelos grandes seios de uma atriz particularmente conhecida por eles, e mostram relevante senso de humor narrativa ao apresentar a morte filosófica de Sócrates de duas maneiras distintas. Mesmo nos momentos mais óbvios, Parannoud e Satrapi pincelam na intransigência de uma chuva ou na neve deprimente, os estados de espírito ideais para determinados momentos.
Tão melancólica quanto a história de Nasser Ali, é o caprichado roteiro que abusa de diálogos substantivos e que engrandecem mais o contexto geral, como naquele que enxerga um personagem afirmando que “suas preces é que me impedem de morrer”, ou aquele que busca explicações para uma pequena fumaça estar exatamente sobre um determinado túmulo.
Apresentando-se como alguém amargurado, cuja grosseira nasce da incapacidade de comunicar-se senão com os acordes de um violino, Mathieu Amalric absorve a tristeza, sem perder o bom humor e a paixão em momentos pontuais ou nas visitas ao passado. Maria de Medeiros, enquanto isso, dedica-se inteiramente a um homem que ela sempre amou, mas nunca a amou de volta, e sua abrupta ação é o golpe de misericórdia na alma de seu marido. E, os adoráveis pequeninos Enna Balland (Lili) e Mathis Bour (Cyrus) funcionam bem, e Golshifteh Farahani, é suficientemente bela e graciosa para explicar a devoção de Nasser Ali por ela.
Levando-nos, durante um pequeno interstício, a uma viagem animada, recordando as suas origens, Vincent Parannoud e Marjane Satrapi encerram a sua lánguida poesia de maneira lúgubre e amarga. Instrumentos esses que Nasser Ali usou para se transformar no maior de todos os maestros e que não poderiam ser mais adequados para encerrar esta história de sua vida.
Uma obra de arte.
44) Rue Huvelin (Idem, Líbano, 2011). Direção: Mounir Maasri. Roteiro: Maroun Nassar. Elenco: Charbel Kamel, Robert Cremona, Carmen Bsaibes, Jimmy Keyrouz. Duração: 90 minutos.
Homenagear os jovens que agitaram o Líbano desde os anos 90, criticando através de um movimento estudantil pacífico a imposição Síria sobre a soberania daquele país, é um trabalho honrado, que o diretor Mounir Maasri e os demais integrantes da equipe de Rue Huvelin transformam em uma brincadeira de universidade. Um projeto tão amador que não duvidaria ser oriundo de um projeto de conclusão de curso, desde o roteiro colegial, à direção e às atuações, passando por elementos técnicos como a montagem e a fotografia.
Com cara de novela da Globo, acompanhamos o cotidiano de alguns jovens participantes do movimento estudantil e que, na maioria do tempo, estão em festas trajando roupas caras (Armani, Lacoste ou Hugo Boss são as mais comuns), tentando fazer sexo com a namorada virgem ou repetindo o mesmo discurso que o Brasil e outros países ouviram nos períodos mais agitados de sua história. A juventude sempre é um motor de mudanças, com suas idéias novas e diversas dos reacionários conservadores, e não duvido que os jovens deste filme tenham tido boas intenções, apesar de que de boas intenções, o inferno cinematográfico está cheio de bobagens.
O diretor Mounir Maasri aparentemente utiliza algumas imagens de arquivo, com o grão mais grosso, apesar de no terceiro ato, filmar os personagens usando o mesmo recurso, o que pretende trazê-los à dimensão real e não fictícia. Mostrando-se um péssimo diretor de atores, observe como o cobrador de aluguéis da pensão olha diretamente para a câmera, ou como os jovens atores, mais apropriados para um episódio de Malhação libanês, não conseguem entoar suas falas sem parecer que estão repetindo textos decorados.
Fotografado por Rupen Vosgimurukian, Rue Huvelin parece não ter identidade, alternando as cores e as paletas a cada novo quadro sem motivo aparente. Além disso, recorde que na cena da banheira, a lente da câmera perde o foco nas bordas em razão do ar quente, o que Rupen parece ignorar veementemente. E quando um personagem pula um muro à noite segurando uma cerca invisível, pois o fotográfo não ajustou adequadamente a iluminação do ambiente?
Soando engraçado quando queria ser relevante, o roteiro de Maroun Nassar nos informa de uma grande revolução na rua, apenas temos um quadro com 1-2 dezenas de policiais e os estudantes do lado de dentro da universidade. Maroun também é patético ao exigir que um de seus personagens, ao olhar um carro com sirenes, afirme “não são esses os carros da polícia?”, ou expositivo demais quando outro diz “deixe minha mãe MORTA longe disso”.
Mas é temporalmente que Mounir Maasri, Maroun Nassar e todos os outros parecem perdidos. E duvido que alguém consiga decidir em que ano nos estamos. Em um momento, vemos um calendário na parede de 1994. Noutro, o troféu da França campeã da Copa do Mundo (ou seja, pós-1998). Finalmente, no letreiro “2 anos depois”, descobrimos que estávamos em 2003. O que também é questionável haja vista os celulares que os jovens utilizavam.
Encerrando uma única cena interessante, quando os jovens adesivam Freedom nas suas bocas, Rue Huvelin é um trabalho acadêmico e amador sem requinte, ou melhor, sem qualquer idéia do que é cinema. Voltem para as aulas agora, ok?
43) Bullhead (Rundskop, Bélgica, 2011). Direção: Michael R. Roskam. Roteiro: Michael R. Roskam. Elenco: Matthias Schoenaerts, Jeroen Perceval, Jeanne Dandoy. Duração: 124 minutos.
O candidato Belga ao Oscar de Filme Estrangeiro em 2012 apresenta um dos personagens mais fascinantes dessa 35ª Mostra de São Paulo: o grandalhão Jackie Vanmarsenille (Schoenaerts). Em razão de um “acidente” na sua infância, Jackie recorre a injeções de testosterona, o que o torna musculoso, agressivo, constantemente exausto e suado. Jovem pecuarista, dando continuidade aos negócios da família, Jackie se depara com o assassinato de um policial e uma cadeia de eventos com consequências desastrosas e trágicas a sua vida.
Falhando precipuamente na confusa situação e nos flashbacks da infância de Jackie, o roteirista e diretor Michael R. Roskam peca na descrição de inúmeras linhas narrativas que dificilmente encontram uma solução satisfória, quando não abandonadas. Assim, a participação da polícia, da máfia flamenga, de desastrados mecânicos e de figuras do passado, apesar de não diminuir a força do protagonista, o subutiliza em um roteiro aquém ao potencial dramático que ele apresentara. Mais do que isso, Roskam é aborrecidamente expositivo e desconfia da inteligência do seu público, recorrendo a porta-retratos na perfumaria para indicar quem é certa personagem (bastava a paciência e alguns minutos para revelar, coerentemente quem ela é), ou em um breve flashback desnecessário no hospital para expor a identidade de certo paciente.
Negando a existência de coincidências no diálogo da policial interpretada por Barbara Sarafian e Diederik (Perceval), Roskam parece não hesitar em usá-las, embora muitos questionamentos surjam imediatamente, e o principal é: por que Jackie não foi atrás antes de Lucia (Dandoy), se ele sabia nos recortes de jornal que ela tinha uma loja? Abonado o uso excessivo de coincidências, Roskam elabora um clímax que é igualmente empolgante e trágico, capaz de enviar o espectador suficientemente satisfeito para casa sem se preocupar com a lógica imediata do que acabou de ver.
Felizmente, Matthias Schoenaerts não padece desse mal, e transforma Jackie em um sujeito esperançoso e, justamente por isso, trágico. Brutamontes, Jackie diversas vezes intimida seus oponentes com a cabeça, o que transforma a comparação com um touro mais literal do que meramente simbólica. É, no entanto, a incapacidade de revelar-se a uma paixão de infância que transforma aquela sujeito, com graves problemas de masculinidade, em alguém frágil apesar da musculatura avantajada. Do outro lado, Jeroen Perceval busca uma redenção inatingível quando era moleque e infelizmente, a homossexualidade do personagem é usada por Roskam não para dar-lhe tridimensionalidade, mas apenas como peculiaridade.
Encerrando a narrativa ruminando os eventos para o espectador, Bullhead realmente padece da falta de inteligência e sutileza de Jackie, porém deveria agradecer a ele por evitar que esta fosse mais história que passasse desapercebida.
42) Parada em Pleno Curso (Halt aux Freier Strecke, Alemanha/França, 2011). Direção: Andreas Dresen. Roteiro: Andreas Dresen, Cooky Ziesche. Elenco: Milan Peschel, Steffi Kühnert, Talisa Lily Lemke, Mika Seidel. Duração: 110 minutos.
Desde o prólogo, conhecemos a doença que acomete Frank Lange (Peschel), um tumor maligno cerebral inoperável. Sabemos inclusive, que a radioterapia e quimioterapia não modificarão a expectativa de vida do sujeito que é, no máximo, de alguns meses. Logo, Parada em Pleno Curso é um esforço exclusivamente perveso e doloroso de um cineasa que deseja esmiuçar os últimos dias de existência de um homem jovem e cheio de potencial, acometido por um acaso do destino, como mencionado pelo neurologista.
Recorrendo a técnicas alternativas e pouco convencionais, como a autocura e a hipnose, Frank Lange logo desiste de qualquer tentativa de luta e acompanha a degeneração progressiva de suas funções neurológicas como a cognição, a memória, o sistema motor e o raciocínio. Ironicamente, Frank mantém intacta a sua habilidade musical, apesar de precisar de lembretes espalhados pela casa para que não confunda, por exemplo, o quarto da sua filha com o banheiro.
O roteiro de Andreas Dresen e Cooky Ziesche descrevem uma narrativa intimista e realista, na qual a maior vítima não é Frank, e sim a sua esposa Simone (Kühnert), que “vai ter que continuar”, após a inevitável morte do marido. Acertando ao transformar aquela familia em uma unidade cujos filhos devem aprender a lidar com a doença do pai, Mika (Seidel), o filho de 8 anos, pergunta para o pai se depois que ele morrer, poderá ficar com o seu iPhone, um pequeno refresco na narrativa e que ilustra perfeitamente a ingenuidade da criança em relação ao tema.
Por outro lado, o roteiro é bem menos feliz em dois recursos narrativos que, usados constantemente, não surtem qualquer efeito prático. O primeiro são as gravações que Frank faz de si próprio usando o iPhone, pois embora sejam os últimos recortes daquele homem e um tesouro a ser guardado pela família, eles não são bem explorados. O outro recurso é a inserção de informações alucinatórias na televisão ou no rádio informando ao espectador (e a Frank) o estado da sua doença.
Apresentado ótimas atuações, gosto particularmente da composição de Milan Peschel desde o ar derrotista e depressivo, aos momentos em que entrega-se a um comportamento imprevisível, ora doce e caloroso, ora exaltado e efusivo. E desde Biutiful, reconheço a importância dramática de um homem jovem trajando fraldas, o que revela a plena vulnerabilidade do sujeito.
Buscando passar uma mensagem sobre a aceitação da finitude e da morte, Parada em Pleno Curso é doloroso, angustiante e remete instantaneamente às lágrimas; a manipulação está presente, mas se encontra mitigada pela segurança do elenco e da direção de Andreas Dresen.
41) Caverna dos Sonhos Esquecidos (Cave of Forgotten Dream, Canadá/Estados Unidos/França/Alemanha/Inglaterra, 2010). Direção: Werner Herzog. Roteiro: Werner Herzog baseado no artigo de Judith Thruman. Duração: 90 minutos.
Ao cineasta Werner Herzog foi dada uma das maiores oportunidades de sua carreira: filmar no interior da caverna Chauvet no sul da França onde, em meados da década de 90, foram descobertas as pinturas mais antigas a datar da história da humanidade, com mais de 30 mil anos de idade e perfeitamente preservadas. Como recompensa, Herzog nos deu de presente Caverna dos Sonhos Esquecidos, uma viagem ilustrativa e didática ao interior da caverna e, mais do que isso, uma das poucas experiências no cinema na qual o 3D é imprescindível para a completa experiência diegética, e não simplesmente para jogar objetos em cima do espectador.
Começando com um plano que serve de aula para os cineastas compreenderem o porquê da existência do 3D, Herzog aproxima-se lentamente da imponente caverna Chauvet, enquanto atravessa um campo que parece ser de uma vinícola (corrijam-me se estiver errado). Depois, conhecemos o esquema de segurança montado que restringe o acesso a poucos cientistas escolhidos e à equipe de filmagens; e mais, passarelas foram criadas impedindo que determinadas áreas mais frágeis sejam contaminadas pela presença humana. Diante de tudo isso, é impossível não criar expectativas acerca das pinturas existentes na caverna, e elas não tardam a impressionar.
Parecendo terem sido feitas “ontem”, como afirma um especialistas, as pinturas paleolíticos fascinam por sua conservação, mas especialmente pela qualidade dos artistas detrás delas. Assim, é impressionante que Herzog refira-se a um “protocinema” ao descobrir imagens de animais com oito pernas, que trazem claramente a ilusão de estarem em movimento. Mais do que isso, o senso de estética também é ousado, construindo verdadeiras obras de arte que interagem com as deformidades e peculiaridades da caverna. Habitada apenas por animais, e visitada por homens pré-históricos somente em rituais e cerimônias, o interior da caverna apresenta imagens de insetos variados, marcas humanas e extraordinárias remissões ao antropomorfismo.
Simultaneamente, Herzog interessa-se pelo trabalho dos especialistas, colhendo informações importantes nos diversos depoimentos, e sobretudo, ilustrando o esforço e o cotidiano de homens e mulheres dedicados exclusivamente a mapear e desvender a caverna completamente. Portanto, o mapeamento computadorizado da caverna mediante coleta fotográfica e a apresentação de pequenas artes e instrumentos musicais que combinados com o descobrimento em Chauvet ajudam a compreender a evolução do ser humano são surpreendentes diante da complexidade do trabalho realizado.
Convidando o espectador a um momento de comunhão com a caverna, o silêncio imposto por Herzog e a trilha sonora erudita e clássica de Ernst Reijseger conferem uma dimensão espiritual no conhecimento da arte de nossos ancestrais. A fotografia de Peter Zeitlinger é espetacular, conferindo textura e cor as menores formações no interior da caverna, como nas estalagmites e estalactites e nos ossos de animais como leões da montanha, espécies ancestrais dos ursos e outros que padeceram no interior da caverna.
Finalmente, o 3D provoca a integração plena do espectador no interior de Chauvet, reduzindo-o diante da magnitude dos caminhos na caverna e, inevitavelmente, revelando quão pequenos somos em face de uma natureza que preservou toda uma arte para que, milênios depois, pudéssemos descobri-la e se fascinar.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.