52) Mentiras Sinceras (Idem, Brasil, 2011). Direção: Pedro Asbeg. Roteiro: Pedro Asbeg. Duração: 75 minutos.
Aprofundando-se no ofício de ator de teatro, o documentário Mentiras Sinceras acompanha o período de preparação prévio à primeira apresentação da peça Mente Mentira, usando-a para discutir diversos aspectos das mentiras mencionadas no título, ou seja, a construção de personagens extraídos de folhas de papel na carne e no osso de atores, em um contexto verossímil e realista nos palcos dos nossos teatros.
Assim, o documentário de Pedro Asbeg funciona melhor como insight e discussão acerca do que é atuação, digerindo a famosa visceralidade interpretativa, do que quando aborda apenas os bastidores da peça. Nesse sentido, a preparação dos atores para entrar na pele dos personagens (cuja história é narrada individualmente por cada um deles) é mais atraente do que os ensaios, as leituras do roteiro e alguns aspectos da direção de Paulo de Moraes.
O próprio texto original de Sam Shepard auxilia na discussão da interpretação teatral, pois trás a história de Bete, uma atriz que sofre os abusos do marido ciumento Jake, que não aceita o trabalho da esposa. Nessa história, as mentiras do título revestem-se de nova roupagem; aquelas que nossa mente cria para poder conviver consigo mesmo e os outros, para aceitar os desígnios e frustrações que a vida impõe s todos.
Discutindo a reinvencão pela repetição e a evolução do texto teatral a partir do trabalho do ator, é interessante que o diretor Paulo de Moraes compare o roteiro com uma partitura musical. Logo, se o maestro estiver inspirado em uma apresentação, ele acrescentará emoção, paixão e substância na melodia; caso contrário, em dias atribulados, ele ao menos será competente, orientando-se nota a nota, escala por escala. É similar o trabalho de atuação no teatro, tornando-o completamente diferente do cinema, e Mentiras Sinceras consegue traçar bem esta distinção maiúscula, afirmando que “se você filmar [o teatro], não vai conseguir capturar o suor daquela pessoa”.
Justamente aí reside o ponto de maior fragilidade de Mentiras Sinceras, pois quando revela a incapacidade de capturar a sensação do teatro em uma tela de cinema, o documentarista Pedro Asbeg mal vê que está apontando a arma para sua própria cabeça (ou melhor, do seu trabalho). Consequentemente, o uso da peça como ponto de começo da discussão sobre a natureza do teatro tem sua relevância mitigada, pois aquilo visto em tela jamais corresponderia às sensações experimentadas na primeira poltrona de um teatro lotado.
Falhando em discutir elementos centrais, como a saída do ator Thiago Fragoso próximo às primeiras exibições, a discussão do documentarista Pedro Asbeg (repito: quando não traja a cara de mero making of) é oportuna e importante para aprofundamento no ofício do ator; infelizmente, porém, dá um gostinho de algo mais. Aí, você tem que recorrer na programação do teatro da sua cidade e cruzar os dedos…
51) This is My Picture when I was Dead (Idem, Holanda/Jordânia, 2010). Direção: Mahmoud al Massad. Roteiro: Mahmoud al Massad. Duração: 83 minutos.
Este documentário de Mahmoud al Massad, enfatizando nas tensões entre Palestinos e Judeus na faixa de Gaza, apresenta a história de Bashir Mraish, um garoto que aos 4 anos, junto com o seu pai em uma visita a Atenas, sofreu um atentado de extremistas israelenses e foi dado como morto. Buscando apresentar o que seria a vida de Bashir caso o diagnóstico deste fosse diferente, Mahmoud apresenta um pouco da história dos conflitos entre as duas nações e o esforço inatingível de um acordo de paz.
Começando o documentário de maneira irrepreensível, Mahmoud al Massad compara as bombas que caem com os tradicionais fogos de artifício do final de ano, acompanhando a mortal (e bela) trajetória daquelas ao som de uma música natalina. A fotografia de Bassam Sammy Checkhes e do próprio Mahmoud é exuberante, capturando o máximo de detalhes de cada personagem, como rugas e imperfeições cutâneas, além de aproveitar-se de uma paleta de cores amareladas sem vida, o reflexo do cotidiano naquela região do oriente médio.
No entanto, a história de Bashir que usa imagens como armas, é desinteressante. Nas conversas com o médico da família sobre a vida de seu pai e o diagnóstico de um tumor benigno, como nos relatos informais a amigos, expondo que a sua namorada não se entende com a sua mãe, Mahmoud al Massad perde momentos preciosos que poderiam ser investidos em maiores detalhes sobre o atentado de 1983 ou a situação atual dos conflitos (e é triste observar que a covarde declaração de uma líder do Mossad, a inteligência israelense, não é explorada melhor, abandonando as consequências que ela certamente provocou).
Por outro lado, o ofício do cartunista Bashir enrique a narrativa ao investir no processo criativo e de execução do trabalho, especialmente o desenho em um editor gráfico, ao invés de contentar-se somente com o resultado final das críticas apresentadas.
Incapaz de apresentar os conflitos detidamente e encerrando de maneira desleal a sua narrativa, o maior defeito do filme, mascarada com um final surpreendente e revelador (onde já se viu um documentário investir nisto?), This is My Picture when I was Dead tem boas intenções, subjudadas irremediavelmente ao longo de 83 minutos.
50) Là-bas – Educação Criminal (Là-bas, Itália, 2011). Direção: Guido Lombardi. Roteiro: Guido Lombardi. Elenco: Kader Alassane, Moussa Mone, Esther Elisha, Billi Serigne Faye, Alassane Doulougou. Duração: 100 minutos.
Là-bas é o primeiro longa metragem do diretor italiano Guido Lombardi e acompanha a história de Yssouf (Alassane) um imigrante africano na cidade de Nápoles, convidado por seu tio Moses (Mone) para desenvolver suas habilidades artísticas, mas que se descobre envolvido no tráfico de drogas de um comando da Comorra (o crime organizado de Nápoles). Contando uma história bastante exaurida, o diretor e roteirista Guido Lombardi investe na trajetória de um homem bom, que sonhava em conseguir dinheiro suficiente para adquirir um computador e enxergava a Itália como uma terra de oportunidades “pavimentada em ouro”, porém que acaba empurrado para a ilegalidade pelo tio que supostamente o amava.
Embora não tenha absolutamente nada de novo (e tenha sido prejudicado pela péssima qualidade da cópia digital exibida na Mostra), Là-bas é relativamente interessante e ganha contornos urgentes graças ao pano de fundo real, no caso, um massacre cometido contra imigrante africanos em uma alfaiataria de Castelo Volturno em setembro de 2008. Neste contexto, Lombardi elabora um roteiro acessível, com elementos fundamentais de apelo público: o melhor amigo Germain (Faye) que se recusa a entrar no crime, um envolvimento amoroso com Suad (Elisha) e o conflito familiar entre Yssouf e seu tio Moses.
Juntamente à dimensão do crime organizado, o roteiro também abre parênteses, na figura de Idris (Doulougou), para apresentar residências de caridade que servem de moradia para os imigrantes, “na cidade mais africana da Itália”, no caso, a Casa das Velas. Nesse sentido, assume sua dimensão social revelando o árduo trabalho realizado por poucos, no intuito de que muitos se mantenham longe da criminalidade.
Contando com um elenco de atores amadores competentes, especialmente Alassane que personifica o arco dramático do herói que, apesar de não seduzido pela ambição e dinheiro, não consegue desvencilhar-se dos tentáculos do tio. Já Moussa Mone realiza uma composição inteligente, equilibrando o determinismo e finalismo sádico de Moses com a forma carinhosa com que se dirige ao sobrinho (“Mon petit”).
Exagerando nos planos detalhe acompanhados do rack focus, marcas registradas da estréia de Guido Lombardi, é inevitável que após a explicação do porquê do nome da residência ser Casa das Velhas, venha um deselegante close em uma vela acesa ou depois de uma conversa, uma pequena planta ganhe o primeiro plano.
Montado com qualidade por Analisa Forgione e Beppe Leonetti, mantendo a atenção do espectador presa às múltiplas linhas narrativas, sem tirar de Yssouf o foco de protagonista, Là-bas não tem nem o título original (como comprova uma rápida consulta no IMDB), entretanto é dirigido e, principalmente, atuado com bastante sensibilidade e rigor, o que conferem uma nota acima da média ao primeiro trabalho deste jovem italiano.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.