Contágio (Contagion, Estados Unidos, 2011). Direção: Steven Soderbergh. Roteiro: Scott Z. Burns. Elenco: Matt Damon, Jude Law, Kate Winslet, Laurence Fishburne, Gwyneth Paltrow, Jennifer Ehle, Marion Cotillard, John Hawkes, Elliot Gould. Duração: 106 minutos.
Não precisa ser um expert em cinema para afirmar que Contágio é o Traffic da epidemia. Dirigidos pelo mesmo diretor, o multitarefado Steven Soderbergh, e apresentando múltiplas linhas narrativas que gravitam em torno de um mesmo tema e expõem os aspectos chave e as consequências de uma epidemia mundial, os dois trabalhos têm o perfeccionismo técnico e o excepcional elenco como principais semelhanças, porém duas diferenças fundamentais: enquanto o cinismo de Traffic é substituído pelo otimismo ingênuo de Contágio, cujas sutilezas iniciais perdem-se em meio a inverossimilhança do terceiro ato, a emoção cede lugar à racionalidade narrativa, e o destino de diversos personagens falha em provocar alguma reação no espectador porque Soderbergh está preocupado exclusivamente com o aspecto matemático da contabilização dos estragos da tragédia.
Apresentando didaticamente diversos termos técnicos, como a transmissão por fômites, ou seja, por contato de superfícies, e a taxa de reprodução da epidemia, o chamado R-zero, o roteiro de Scott Z. Burns é eficiente ao descrever a epidemia de forma prática, sem ser demasiadamente expositivo. Para isso, ele recorre às reuniões de equipes de especialistas que, em meio a discussões das estratégias de contenção da epidemia, agem como os professores do espectador, especialmente a Dr. Erin Mears (Winslet), do CDC (centro de controle e prevenção de doenças). Ao mesmo tempo, Scott Z. Burns inteligentemente sugere o desconhecimento (uns crêem tratar-se de um ataque biológico) e o despreparo dos médicos, confundindo o vírus com uma meningite, encefalite ou envenenamento por mercúrio, para em seguida se focar especificamente no coração do projeto: a forma com que a sociedade contemporânea iria lidar com uma epidemia mortal em larga escala. Logo, é irrelevante descobrir a origem do MEV-1, o fatídico “Dia 1”, pois a narrativa prescinde deste dado para ser eficiente, e sugeri-lo apenas serve para restringir as opções de interpretação do espectador.
Compartilhando a frieza do roteiro, a direção de Steven Soderbergh é satisfatória em ilustrar a epidemia antes mesmo da primeira imagem, nos sons da tosse de Beth Emhoff (Paltrow). Soderbergh também ilustra com competência a velocidade de transmissão das fômites a partir de planos-detalhe de um pote de amendoim ou de maçanetas, inclusive transformando um inocente translado de ônibus no local ideal para o amplo contágio da doença. Apostando em elementos subjetivos, como a visão turva, e ilustrando a violência dos sintomas (especialmente uma impressionante convulsão), Contágio recruta rapidamente o espectador para o terror de sua narrativa.
Ciente disso, o pânico da população por algumas unidades de remédio restantes ou a desesperadora imagem do abandono de uma cidade são alegorias da incompetência generalizada da humanidade em lidar com grandes crises. Igualmente curiosa é a importância conferida à velocidade de propagação da informação, bastante superior a de propagação do MEV-1, sugerida na figura do blogueiro Alan Krumwiede (Law) que alcança destaque repentino ao denunciar uma teoria da conspiração envolvendo o alto escalão do governo e as indústrias farmacêuticas, e tornando-se o porta-voz apocalíptico e salvador da humanidade. Aliás, é pertinente que o roteiro encubra uma revelação crucial de Alan, deixando-a em aberto para questionamentos posteriores do espectador.
Apresentando uma abordagem estética similar a de Traffic, a fotografia de Soderbergh usa ao menos três paletas distintas para transmitir sensações opostas na crise epidêmica. A primeira no depressivo azul da fria Chicago, apropriada para a abordagem intimista do drama de Mitch Emhoff (Damon), cuja esposa e enteado morrem vítimas da doença, e que alcança a ironia trágica da Dr. Mears. Outra paleta, quente e dessaturada, concentra-se nos esforços da Dra. Leonora Orantes (Cotillard), da OMS, em investigar as origens da doença em um pobre vilarejo Chinês. A última paleta, tradicional e sóbria, é perfeita para ilustrar as tomadas de decisão do Dr. Ellis Cheever (Fishburne) no alto escalão, que devem ser generalistas e ignorar o aspecto individual da tragédia de cada ser humano.
Outro elemento narrativo fundamental é a abordagem estética de favorecer as ações transcorridas no primeiro plano e mater turvo e sem foco os eventos do segundo plano. Isto traduz-se na incapacidade de cada personagem em compreender e lidar plenamente com a epidemia, restringindo-se àquelas ações mais próximas e imediatas. Todavia, apesar de apresentar um ritmo ágil e mormente tenso e urgente, a montagem de Stephen Mirrione (que também trabalhou em Traffic) falha em conferir relevância a diversos personagens, e o hiato durante o sumiço da Dra. Orantes é sintoma da irrelevância da cientista para a narrativa.
Contando com elenco sedutor de ótimos intérpretes, a participação de Gwyneth Paltrow não passa desapercebida nos seus curtos (e intensos) momentos. Infelizmente, o mesmo não pode se dizer dos desperdiçados Elliot Gould e John Hawkes, cujas presenças justificam-se, respectivamente, para mover a história adiante e ressaltar a abnegação de determinado personagem, ou do descaso com Kate Winslet, novamente comprovando que a frieza excessiva absorve o impacto dos momentos de maior dramaticidade. Porém, é curioso observar que essa abordagem racional e prática é suplantada no pieguismo da versão domiciliar de uma festa de formatura.
Ao menos é consolador ver Laurence Fishburne em uma boa participação desde Matrix e um Jude Law ácido e contundente personificando a crítica à ganância das grandes corporações (na qual se inclui o Governo dos Estados Unidos, a OMS, dentre outros). Mas, o grande destaque do elenco é Matt Damon, que equilibra a decepção da traicão, a tristeza e amargura de perder a esposa e o instinto de sobrevivência e proteção da família, na composição minimalista de um homem pacato e reservado.
Apresentando uma trilha sonora eletrônica desconfortável e intransigente, Contágio afasta-se da realidade na conclusão excessivamente otimista, fruto da ação chave da Dra. Ally Hextall (Ehle), e cujas consequências negativas pareceriam mais óbvias e evidentes. Assim, embora tecnicamente irrepreensível e competente, Contágio é vazio de emoções e padece daquilo que o MEV-1 tem de melhor, a sua capacidade de disseminar o medo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
8 comentários em “Contágio”
Acredito que quando eu assisti a esse filme eu fui muito racional, porque eu realmente não percebi esse detalhe que você comentou a respeito do excesso de racionalidade. Hoje, já tendo absorvido o filme, eu percebo que realmente falta um ascpeto dramático, algo que impulsione a emoção – e isso se verificaria numa cena como a de Dra. Mears.
Mas ainda considero que esse filme seja um bom "retorno" de Soderbergh, que parecia estar sem oferecer nada efetivamente bom desde Traffic. Acho que seja um filme que valha a pena!
Realmente, a ineficiência do desfecho parece um consenso. Ninguém conseguiu engolir. Mas no geral, é um bom filme.
Grande abraço
Concordo com ambos. É um bom filme, mas nada além do que isso.
Geralmente concordo com as críticas deste blog, mas esse, pra mim, é um péssimo filme. Não nos transmite emoção. Não nos faz pensar. É simplesmente insosso.
Concordo, não transmite alguma emoção e a morte de alguns personagens simplesmente não têm impacto algum. No entanto, ele é perfeito tecnicamente, apesar de não atingir os padrões estabelecidos para um Soderbergh.
Este comentário foi removido pelo autor.
Interferência para dar um pitaco no comentário do Luis: nada de bom desde Traffic? E Onze Homens e um Segredo, Full Frontal, Solaris, Bubble, O Segredo de Berlin, a bilogia Che, Confissões de uma Garota de Programa…?
A você, Márcio, parabéns por mais uma excelente crítica! Abraço. 🙂
Bubble eu nunca vi e o Full Frontar eu tiraria da lista. Os outros muito bons filmes.