Descaradamente retomando a linha geral narrativa do antecessor, conhecemos Eric, filhote de Gloria e Mano, o pinguim sapateador do episódio anterior. Reflexo do pai na infância, Eric não se encaixa no bando de pinguins, falhando em compreender o porquê da comunicação fundamentalmente musical da espécie e o entusiasmo e furor provocados pela dança. Humilhado depois de uma dança desengonçada, ele foge com seus amigos Atticus e Bo no encalço de Ramón e conhece Sven, um suposto pinguim voador idolatrado pelos seus pares. Ao mesmo tempo, acompanhamos Bill e Will, dois krills que buscam conhecer o mundo além do cardume e questionam a importância da amizade no decorrer de sua aventura.
Limitando-se a reproduzir as alegorias introduzidas no seu predecessor, acompanhamos os discursos fervorosos e proféticos do fundamentalismo religioso, escancarado na idolatria a Sven, ou a maneira com que os pinguins enxergam os humanos “alienígenas”. Além disso, o filme bate novamente na tecla do discurso ambientalista, enfatizando no degelo das calotas polares a ameaça ao habitat natural dos pinguins-imperadores, presos em um vale sem saída após uma catástrofe. Para salvá-los, é fundamental a cooperação de diversas espécies distintas, inclusive elefantes-marinhos, reflexo da incapacidade humana de sanar os males provocados na natureza e a capacidade desta de se curar.
Contudo, os subtítulos de Happy Feet 2: O Pinguim estão a serviço de uma narrativa oca, sem um fio condutor concreto, pois o drama de se sentir diferente diante de seus pares foi tratado à exaustão no episódio anterior e é natural que os traumas de Erik sejam tratados com maior sensibilidade por seus pais e o bando (diferentemente de Mano que na infância era enxergado com desconfiança por seu pai). Da mesma maneira, a catástrofe não consegue esconder que simplesmente o filme não tem história alguma, afora um conjunto de situações unidas por elos bastante ínfimos e óbvios. Logo, quando Mano salva um elefante-marinho da morte certa, sabemos exatamente o momento narrativo em que o bichão irá retribuir o favor. Igualmente, o ataque de gaivotas ou a ameaça de focas-leopardo são meram distrações usadas unicamente para movimentar o roteiro.
Mas, o melhor exemplo do desleixo dos quatro roteiristas é a apresentação de Bill e Will, dublados na versão original por Brad Pitt e Matt Damon. Protagonizando uma narrativa díspare e independente da central, a dupla é praticamente a resposta da Warner ao esquilo Scratch de A Era do Gelo, contribuindo unicamente em um pequeno detalhe no clímax (inegavelmente desnecessário). Assim, apesar de divertidos, a fuga de um cardume e do apetite voraz de uma baleia, o desejo em subir na cadeia alimentar ou o envolvimento no já mencionado ataque de gaivotas são momentos visualmente inspirados, porém descartáveis no transcorrer da narrativa.
Por outro lado, o perfeccionismo de George Miller atinge patamares elevadissímos e é impossível desprezar os aspectos técnicos, que somados à liberdade de movimentos da câmera, permitem quase esquecer os defeitos narrativos. Os minúsculos cristais de neve, a plumagem característica de cada espécie de pinguim – observe como a pintinha similar a uma gravata borboleta de Mano é herdada por seu filho -, uma violenta tempestada de neve ou a animação de fluidos derrubam o queixo do mais cético espectador. Porém, genial é o exoesqueleto dos krills, translúcido e revestido de pequenas manchas vermelhas, iluminando-se ou se camuflando de acordo com o ambiente.
Aliás, a fotografia digital de David Dulac e David Peers também é extraordinária, e os efeitos de iluminação provocados por caravelas douradas ou as sombras aquáticas apenas reforçam a principal qualidade de Happy Feet 2: O Pinguim. No entanto, no quesito que era a especialidade do original – os números musicais -, a versão dublada, e exclusivamente ela, peca na estranha mistura de algumas músicas em inglês (como Under Pressure de David Bowie e The Queens) e outras em portugês, notadamente na ópera cantada por um personagem no ato final.
Uma sequência preguiçosa e menos empolgante e intensa que o esforço original de George Miller, mas um trabalho que, ao menos do ponto de vista técnico, não pode ser descartado. Um prato cheio para as crianças – e vi muitas delas dançando e sapateando do lado dos pais -, porém não exatamente um capaz de despertar a chama infantil existente no coração adulto de cada um de nós.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
4 comentários em “Happy Feet 2: O Pinguim”
Márcio,
concordo com você a respeito da técnica do filme. O que mais me impressionou foi a riqueza de detalhes do mundo microscópico dos krils que, mesmo minúsculos, são extremamente elaborados.
E a ópera em português realmente não foi legal. Em sessões muito cheias, é capaz de gerar até risos da platéia.
Grande abraço!
Marcio,
parabéns! Seu texto está ágil, criterioso e inteligente. Sem dúvida nenhuma, importantíssimo no cenário maranhense da crítica de cinema, demonstrando uma paixão verdadeira e genuina pelo cinema, fundamental nesse exercício crítico. Continue firme e empolgado. Abraço,
Frederico Machado
The Queens? oxi!
The Queens? oxi!