Sem investir tempo apresentando Tintim ao grande público, o roteiro de Steven Moffat retocado por Edgar Wright e Joe Cornish limita-se a descrever a personalidade do jovem repórter através de suas aventuras e observações realizados cotidianamente, como a curiosidade e fascínio despertado pelos mistérios existentes em antiguidades. Ele e seu inseparável fox terrier Milu eventualmente esbarram em uma réplica do Licorne, a mítica embarcação comandada pelo capitão Frances Haddock desaparecida sem deixar vestígios, e que desperta o interesse do colecionador Ivan Sakharine. Perseguido por seus capangas que desejam pôr as mãos no pergaminho escondido em um dos mastros da miniatura do Licorne, Tintim é literalmente arremessado em uma aventura que o leva a alto-mar, ao deserto do Saara e a um longíquo território árabe (a fictícia Bagghar) na busca do segredo encerrado na história de Francis Haddock. Expondo sua fragilidade no tom episódico da narrativa, o roteiro compensa suas falhas nas abundantes sequências de ação que deslumbram e cegam o espectador, impedindo-o de enxergar que a simplicidade da história contada realmente não faz jus à perspicácia do seu herói.
Reconhecendo a importância de Tintim ao apresentá-lo nos traços originais de Hergé desenhados por um retratista de rua, Steven Spielberg também homenageia e atualiza a clássica ilustração de Tintim e Milu correndo acompanhados pelas luzes de um holofote. Transformando-o numa espécie de jovem Indiana Jones (as semelhanças são óbvias demais para serem descartadas), Spielberg organicamente incluiu outra referência a seu trabalho anterior, associando a marca registrada de Tintim, o seu topete, com seu Tubarão (há um empalhado no barco de Sakharine). Confortável com a câmera digital, Spielberg investe na liberdade dos movimentos, ângulos e tomadas, e até mesmo acompanhar Milu em perseguição revela-se um ótimo momento de escapismo e diversão.
Com uma técnica de captura de movimentos mais evoluída daquela apresentada por Robert Zemeckis nos seus filmes (O Expresso Polar, Beowulf ou Os Fantasmas de Scrooge), a animação não cessa de surpreender nos pêlos arredios de Milu e nos fios presos no casaco de Tintim, bem como nas imperfeições da pele dos personagens, as manchas, cravos e a barba a fazer. Nem mesmo os olhos vidrados revelam-se um inconveniente, pois a animação ressalta sua natureza na extrapolação de certas características dos personagens, como os narizes protuberantes. Apresenta uma perfeita animação de fluidos (não faltam cenas no mar), a técnica peca na reprodução do fogo, artificial e pouco convincente. Mesclado com o olhar minuncioso de Spielberg, repare nas gotículas de água nas janelas das cabines, a direção de arte, que apresenta brevemente os feitos de Tintim em recortes de jornal, e a fotografia com bom uso de sombras e fachos de luz são uma constante (Janusz Kaminski atuou como consultor), e fazem d’As Aventuras de Tintim uma animação visualmente impressionante.
Mas é a fluida montagem de Michael Kahn, colaborador habitual de Spielberg, e as intensas cenas de ação os verdadeiros tesouros do filme. Certamente consumindo semanas em storyboarding e apresentando uma mise-en-scène e decupagem milimetricamente perfeitas, a fuga de Bagghar é o ápice da narrativa. Com a boa utilização do 3D para conferir a profundidade necessária às múltiplas ações ocorridas na perseguição a Tintim e o capitão Haddock, a sequência de 6-7 minutos impressiona pela quantidade de opções proporcionadas, como as consequências da destruição de uma barragem, e pela dinamismo com que ocorrem, frequentemente uma ação desenrola-se no segundo plano interferindo no primeiro plano, estabelecendo-se como um dos planos-sequência mais intensos e empolgantes vistos em animação. Curiosamente, o desfecho é prejudicado por comparação, pois embora seja um bom momento, não chega aos pés do visto anteriormente, revelando-se aclimático. Já Michael Kahn usa a liberdade proporcionada pela animação para investir em transições inteligentes, como as fusões envolvendo um oceano e uma poça d’água ou as dunas do deserto e as ondas revoltas. Transformando o flashback das lembraças de Francis Haddock em um momento de rara inspiração, no qual presente e passado se revelam nos reflexos de uma espada, na queda de um mastro ou mesmo no ventilador do teto (!), o montador confere vitalidade e dramaticidade a uma impiedosa batalha naval.
Com a ótima trilha sonora de John William (a melhor deles em anos), combinando o tom aventuresco com elementos noir e acordes prosaicos, os créditos iniciais revelam o melhor do compositor que derrapa pontualmente nos toques cômicos inseridos nas conversas de Tintim e Haddock. Provando novamente porque é quem é, Spielberg finalmente afugenta a covardia que vira e mexe prejudicam seus filmes e não pisa no freio sequer na imagem de um marujo que perdera as pálpebras (uma imagem certamente incômoda para os mais novos). No processo, ele abraçou o jovem cineasta vivo dentro de si e criou uma aventura excitante que, contornando o fiapo de história no qual é baseado, inaugura uma formidável franquia nos cinemas.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “As Aventuras de Tintim”
Eu achei muito lega. Senti que o personagem perdeu um pouco de sua essência, mas gostei bastante do que fizeram com ele. Ficou uma animação bem divertida!
Eu achei muito lega. Senti que o personagem perdeu um pouco de sua essência, mas gostei bastante do que fizeram com ele. Ficou uma animação bem divertida!