Atirem no Pianista (Tirez sur le Pianiste, França, 1960). Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Marcel Moussy baseado no livro de David Goodis. Elenco: Charles Aznavour, Marie Dubois, Nicole Berger, Michèle Mercier, Serge Davri, Claude Mansard, Richard Kanayan, Albert Rémy, Daniel Boulanger. Duração: 80 minutos.
Grande admirador do cinema de gênero norte-americano, apesar de desprezar e se rebelar contra o convencionalismo narrativo proeminente em Hollywood, François Truffaut misturou elementos de diversos gêneros (principalmente, filmes de gângster e o noir) e homenageou um de seus maiores ídolos, Alfred Hitchcock, no jocoso exercício narrativo Atirem no Pianista. Convidando o espectador a experimentar distintas sensações através da desvirtuação da linguagem cinematográfica empregada naquele momento histórico, Truffaut elaborou um típico produto cult, um filme que fracassou solenemente nas bilheterias no ano de seu lançamento para apenas anos depois descobrir o seu público. Não é nem de longe um dos melhores trabalhos do diretor, mas é um daqueles em que ele está mais solto e desinibido. Portanto, é uma pena que Truffaut tenha se acovardado diante da recepção negativa e evitado novos esforços ousados no emprego de arrojadas ferramentas estéticas e linguísticas. Seu conteúdo, porém, felizmente permaneceu inabalável, original e rico.
Com uma narrativa fragmentada e dispersa, o roteiro de François Truffaut e Marcel Moussy baseado no livro de David Goodis apresenta Charlie Kohler (Aznavour), o tímido pianista de um bar de segunda classe onde trabalha a garçonete Léna (Dubois). Eles são apaixonados um pelo outro, apesar do acanhamento ser um obstáculo aparentemente intransponível, o que não escapa dos comentários de Plyne (Davri), o duvidoso dono do estabelecimento. Certa noite, depois de ser perseguido por dois perigosos gangsteres Momo (Mansard) e Ernest (Boulanger), Chico (Rémy) surge no bar e envolve o irmão Charlie em um misterioso acerto de contas. Escrito na medida em que era filmado, uma experiência que Truffaut não repetiria novamente, e de forma improvisada, o cineasta supera a linearidade clássica no
flashback que apresenta Edouard Saroyan, a verdadeira identidade de Charlie antes que uma tragédia mudasse a sua vida. Com significativas mudanças de tom – romance, mistério, humor e tragédia intercalam-se na abordagem intransigentemente realista -, a irregularidade é, ironicamente, um dos charmes da narrativa apesar de Truffaut ainda não dispor plenamente da habilidade para trabalhar a falta de uniformidade e a inexistência de um fio condutor com fluência e elegância. Dessa forma, após acertar na influência
noir do começo da narrativa, onde sombras e a câmera típica do gênero ilustram o quase atropelamento de Chico, Truffaut introduz a despretensiosa e despropositada conversa entre aquele e um desconhecido que o salva, pecando na absurda casualidade.
Se do ponto de vista narrativo Truffaut escorrega, Charles Aznavour mais do que compensa no papel-título. Personagem tipicamente hitchcockiano, Charlie/Edouard é um homem pacato que passaria desapercebido em uma multidão, algo que acontece todas as noites no bar em que trabalha. Atormentado (melhor seria, envergonhado) por um segredo do passado, quando havia superado a timidez, ele não consegue sequer por em palavras o sentimento que sente por Léna, o que culmina no excepcional duelo imaginário que trava na sua cabeça durante uma narração em voice over. Ligeiramente neurótico – Woody Allen se refestelaria – e discreta e moralmente ambíguo, feição revelada no violento reencontro no bar, Charlie tem sensíveis desvios de personalidade que, no final das contas, o enriquecem e culminam na trágica união com seus outros irmãos no tiroteio do terceiro ato.
Brincando com os dogmas e costumes do cinema, como na clássica cena da nudez de Michèle Mercier que supostamente deveria ter os seios encobertos pelos lençóis (como de praxe ocorre no cinema nas cenas de sexo), Truffaut, vanguardista, instiga e questiona a fórmula seguida para produção da maioria dos filmes. Ele brinca com a associação praticamente aleatória entre os personagens que as vezes surgem inesperadamente, utiliza rimas temáticas grandiosas, e o simples fato de Thérèse e Léna terem a mesma profissão é suficiente para reconhecer o peso que isso impõe em Charlie, e sobressalta a importância do sexo feminino. Nesse sentido, é curioso observar que as grandes mudanças provocadas na narrativas têm, mormente, o estopim numa ação de uma mulher: Thérèse o alçou a condição de pianista renomado, a proprietária do bar desencadeia as ações vistas no desfecho e ultimamente, Léna quem desarma as defesas de Charlie.
Montado por Claudine Bouché e Cécile Decugis e relevando as inconstâncias inerentes às súbitas mudanças narrativas, Atirem no Pianista impressiona pela fluidez e transições visualmente inspiradas. Depois da incredulidade de Fido acerca da existência de certo lenço de metal flexível, Momo insiste na veracidade da afirmação disparando um sonoro “eu quero que minha mãe caía morta se eu estiver mentindo”, seguido da ilustração literal de sua mãe caindo morta (uma piada surpreendentemente original no cinema àquela época). Enquanto isso, as indagações e reflexões de Léna na cama têm um esforço sublime e onírico nos entrecortes tranquilos e pacíficos dela e Charlie dormindo. Já a fotografia de Raoul Cotard, um dos nomes essenciais na fotografia da nouvelle vague, pega emprestado elementos típicos do cinema norte-americano conforme desejara Truffaut, tais como a abundância de sombras, os planos expressionistas imersos no breu absoluto e o contraste da alvura da neve com a brutalidade dos momentos finais.
O primeiro fracasso de bilheteria na carreira do cineasta dentre outros que viriam, François Truffaut talvez não tivesse amadurecido o bastante para comandar essa narrativa ambiciosa e lhe faltasse segurança, ou talvez a forma improvisada das filmagens tenha prejudicado o resultado final. De qualquer forma, Atirem no Pianista é uma aposta ousada, um produto original cuja crise de personalidade apenas não é maior do que o azar e a tragédia na vida do seu herói. Um esforço admirável e falho em reproduzir o cinema americano conforme as rígidas regras da nova produção francesa e, por isso mesmo, uma obra de inquestionável importância histórica.
* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na sexta, 27 de janeiro, com Jules & Jim – Uma Mulher para Dois (1962).
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Atirem no Pianista”
Muito interessante o especial, pelo que li esse é apenas legal….não deve entrar na lista.
Pelo contrário Tiago, esse é o típico de filme que tem que ser visto pelo cinéfilo porque traz elementos de gênero e múltiplas ao cinema daquele período. É como "2 Coelhos" ou "Bunraku", dois filmes fracos, na minha opinião, mas imperdíveis pela forma com que se consuma o seu fracasso.