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Carlos

Carlos (Idem, França/Alemanha, 2010). Direção: Olivier Assayas. Roteiro: Olivier Assayas, Dan Franck e Daniel Leconte. Elenco: Édgar Ramírez, Alexander Scheer, Alejandro Arroyo, Fadi Abi Samra, Ahmad Kaabour, Talal El-Jordi, Juana Acosta, Nora von Waldstatten, Christoph Bach. Duração: 330 minutos.
Apesar de exibido na maioria dos festivais, como no tradicional Cannes, na versão completa de 5 horas e meia, a trajetória do revolucionário líder marxista e terrorista venezuelano Ilich Ramírez Sánchez foi idealizado como uma minissérie em três episódios, o que eventualmente frustrou as pretensões da produção em abocanhar indicações ao Oscar do ano passado. Tendo respeitado o formato original da produção, e trilhando o caminho distinto dos demais críticos que assistiram à produção ininterruptamente, é impossível não reconhecer os méritos de Carlos, especialmente no tocante à direção de Olivier Assayas e à atuação comprometida de Édgar Ramírez, que curiosamente compartilha o mesmo sobrenome do monstro que personificou, o notório Carlos, o Chacal (alcunha que jamais é mencionada ao longo dos 330 minutos).

Dividida em três partes, a minisséries harmoniza três momentos distintos da vida de Ilich. A primeira parte, a mais nobre e romantizada, mostra os esforços do (ainda) anti-herói no combate as mazelas do capitalismo, anti-sionista e defensor dos ideais comunistas presentes no manifesto do partido comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, através da luta armada e revolução. Patrocinado por organizações de países distintos e consumido pela vaidade e soberba, Ilich perderia completo contato com a revolução (se é que o teve anteriormente), usando-a de fachada e camuflagem para esconder dos outros e de si mesmo que era unicamente um mercenário e terrorista. Dessa forma, o audacioso criminoso torna-se inimigo público ao realizar o seu feito mais incrível, o sequestro de ministros membros da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), na reunião transcorrida na Aústria. Não a toa, a segunda parte da minissérie dedica-se patricamente a esse evento, uma verdade queda de braços política que culminou no terço derradeiro da trajetória de Ilich, a sua decadência. Mas, além de ilustrar os resquícios de importância no mundo contemporâneo das ações de Ilich quando algumas poucas nações socialistas ainda apoiavam secretamente suas ações, a terceira parte da minissérie atém-se também a degradação moral e física do personagem e ao seu relacionamento com Magdalena Kopp (Waldstatten), a mãe de sua filha.
Inteligentemente evitando justificar as ações de seu vilão, mesmo que em certo momento, a luta armada pareça intrinsicamente embrionária na constituição de Ilich, quando afirma ser a herança dos seus pais e a única coisa que poderia fazer, o roteiro de Olivier Assayas, Daniel Leconte e Dan Franck também evita diluir as ações do terrorista, e mulheres e crianças inevitavelmente acabam vítimas diretas ou colaterais das ações do monstro. Hábeis na elaboração de uma narrativa cheia de tentáculos e que, em mãos erradas, rapidamente se converteria em uma confusão de personagens e situações, os roteiristas conseguem traçar um mapa fértil das ações de Ilich e sua conexão a partir da FPLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina) a diversas outras organizações terroristas no mundo árabe e no leste-europeu. Dessa forma, a narrativa exige atenção do espectador e deixa de recompensa um diagrama parcialmente completo das atividades, algumas delas frustradas ou sequer iniciadas, e das alianças realizadas por Ilich naquele período, reproduzindo a figura complexa e hipócritca de um comunista que não hesitava em ser uma espécie de celebridade no meio e de trajar roupas caras de marca.
Por sua vez, a direção de Olivier Assayas é feliz em inserir trechos de reportagens jornalísticas e entrevistas extraídas de arquivos, permitindo simultaneamente a economia no orçamento da produção e conferindo um bem vindo realismo, mantendo a inflexão e a urgência na voz dos apresentadores ao relatar os atos criminosos praticados no contexto daquela época em que o terrorismo era corriqueiro. De fato, não é difícil ver como o peso dos acontecimentos contemporâneos, e não me refiro somente ao 11 de Setembro, mas o ataque à embaixada americana no Líbano, a explosão do vôo da Pan Am, dentre outros, modificaria completamente a certa naturalidade existente nas transmisões originais. Beneficiado pela reconstituição detida da década de 70, a fotografia de Yorick Le Saux e Denis Lenoir aposta em uma paleta de cores próxima ao sépia, conferindo um aspecto envelhecido e nostálgico aos eventos da narrativa.
Apresentando uma trilha sonora muito bem aproveitada e músicas incidentais marcantes, sobretudo “El Sueño Americano” que encerra os dois primeiros episódios, e uma montagem de cortes secos que confere o imediatismo e objetividade das ações terroristas sem que estas se tornem repetitivas e demasiadamente extensas, eu poderia continuar explorando as inúmeras qualidades desse ambicioso projeto. Porém, é realmente o ator venezuelano Édgar Ramírez o grande motivo do espectador não desgrudar os olhos da tela de Carlos. Sem cometer o erro de tornar seu vilão mais palatável ao público, Ilich é grosseiro, arrogante, intimidativo e demasiadamente narcisista (após despertar, há um plano que ilustra muito bem o que acabo de dizer), considerando-se um líder cujas ordens são inquestionáveis e prescindem de justificativa, e o definitivo soldado marxista, apesar de não enxergar que suas ações somente o tornam um mercenário ordinário. Adentrando na personalidade de Ilich, a composição perfeita de Édgar Ramírez não permite o desperdício de sorrisos, que se tornam mais escassos com o decorrer da narrativa, além de torná-lo menos propenso ao contato humano. Sim, o nascimento de sua filha e, posteriormente, a recusa de asilo de outras nações parecem despertar um lado humano gentil e temeroso, respectivamente, escondidos debaixo de seu discurso retórico, porém não é o bastante para escusar as suas ações.
Afinal de contas, e como frisa muito bem o Ministro da Venezuela do OPEP, existem duas formas de combater o famigerado capitalismo. A primeira envolve ações sociais e revoluções pacíficas; a outra passa pelo completo desprezo do ser humano e das instituições que regem a sociedade. Ultimamente Ilich, ou Carlos como viria a se entitular, escolheria a segunda. Um caminho sem volta que jamais permitiria que confundíssemos o monstro que ele é, com o revolucionário que ele ousou ser. Este é o maior mérito de Carlos.

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3 comentários em “Carlos”

  1. O filme traz um bom retrato das organizações terroristas dos 70, que vez por outra me interessam saber.
    Traz um panorama interessante de como funcionavam e acabam, tanto as organizações quanto os sujeitos que participam delas, se revelando peões do jogo internacional, por mais que acreditassem que não.

    abs.

  2. Arrisco em dizer que é o melhor texto que li a respeito de Carlos (não li a crítica do Pablo Villaça ainda, que sou fã, mas…)! Sempre tive relutância em assistir, por ser demasiado longo… Agora irei assistir do modo que você indicou e que o filme foi planejado: dividido em capítulos. Vou procurar e conferir, com certeza!

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