Co-escrito por Alexander Payne, Nat Faxon e Jim Rash, indicados ao Oscar, a partir de um livro de Kaui Hart Hemmings, o roteiro acompanha o bem-sucedido advogado Matt King cuja descontração e informalidade do seu figurino (roupas florais, bermudas e chinelos são uma constante) destoa dae sua abatida e exausta cadência. Matt também é o depositário da herança de seus ancestrais reais, no caso uma enorme reserva na ilha de Kauai, e enquanto decide pela venda das terras, Matt é surpreendido pelo acidente de lancha da esposa Elizabeth (Hastie) que a coloca em estado de coma irreversível e a poucos dias da morte. Buscando a reconciliação com suas filhas, a precoce e divertida Scottie (Miller) e a rebelde Alex (Woodley), Matt eventualmente descobre que Elizabeth o estava traindo, o que o põe no encalço do amante ao mesmo tempo em que deve se preparar para as despedidas finais de sua esposa.
Adotando uma estrutura próxima ao novelesco, o roteiro preza pelo realismo do universo diegético no retrato do cotidiano daquela família. Assim, embora pareça introduzido a esmo, o pedido de desculpa de Scottie a uma colega ilustra a preocupação de Matt em ensinar responsabilidade e remorso à filha mais nova. Por sua vez, o roteiro despreza clichês e Matt revela para Alex, na primeira oportunidade, que a mãe está à beira da morte – uma mentira poderia facilmente ser o conflito final nas mãos de um roteirista menos habilidade. Da mesma forma, depois de descobrir que a traição era alcovitada por um casal de amigos, Matt esbafore, é cruel e egoísta, mas se contém no momento em que percebe que fora longe demais, numa ação perfeitamente justificável e razoável do personagem.
Aliás, a verissimilhança é um o ponto-forte da direção de Alexander Payne, cujos filmes anteriores (Sideways – Entre Poucas e Boas e As Confissões de Schmidt) beneficiavam-se de um olhar adulto e ordinário na jornada de personagens humanos, falíveis, inseguros e aflitos, dos que nós encontramos às dúzias no dia-a-dia. Fugindo do prosaico, Payne facilmente converte aqueles homens nos nossos heróis, e sem pieguismo e maniqueísmo, permite a identificação do espectador independentemente de quem retrate, seja uma dupla de amigos enófilos, um aposentado frustrado ou um advogado de meia-idade numa crise familiar. Nem mesmo seus personagens secundários escapam de um tratamento tridimensional, logo se o avô Scott (Forster) parece proteger-se detrás de uma rígida casca de onde culpa indiretamente Matt pelo ocorrido ao invés da imprudência da filha, Payne nos concede no final um relance no olhar de um homem cuja mulher sofre do mal de alzheimer e que acabara de perder a filha, um momento fundamental de fragilidade para que Scott dispa-se de seu ar durão (trazido à tona num merecido soco desferido). Payne também demonstra sensibilidade ao jamais enxergar o amante de Elizabeth, Brian (Lillard), como um antagonista (apesar de Matt crer que ele seja), humanizando-o quase que instantaneamente através de sua doce esposa (Greer).
Com seu tradicional senso de humor discreto e ladino, Payne utiliza Sid (Krause) como alívio cômico, e se a princípio ele é um garotão chato, inconsequente e grosseiro, na jornada são reveladas camadas mais ponderadas na sua personalidade (que, não deixa de ser a de um adolescente). Investindo em mordiscadas agridoces, como na pergunta retórica de Matt, “o que faz as mulheres ao meu redor quererem se auto-destruir?”, Payne constrói uma terapia familiar ao redor do leito de Elizabeth, onde mágoas, rancores e frustrações misturam-se a remorsos e desculpas, culminando na comovente e breve despedida de Matt.
Entregando uma ótima atuação, mas nem de longe a melhor de sua prolífera carreira, George Clooney transforma Matt em um homem inseguro e cabisbaixo, embora articulado e sereno. Existe covardia também, compensada pelo ímpeto presente no, aí sim, excepcional desempenho de Shailene Woodley. Jovem durona, o mais perto que o espectador chegará da personalidade de Elizabeth anunciada nos relatos de amigos, Shailene é apresentada como uma adolescente clichê, bêbada e rebelde, falando palavrões e debochando das aproximações do pai. Somente após o choro capturado na câmera subaquática, ela torna-se o anteparo e cúmplice do pai, o auxílio crucial para que ele lide com a morte da esposa e a esperança de união da família.
Apostando na iluminação natural, o diretor de fotografia Phedon Papamichael mantém um tom firme e realista, consoante à narração de abertura de Matt King, mas não tão distante da abundância das belezas naturais e praias de mar azul características da região. Buscando um equilíbrio entre o sofrimento e a dor de Matt e a harmonia e placidez natural, Phedon acerta numa suave harmonia, também presente na fluida montagem de Kevin Tent (colaborador habitual de Alexander Payne e indicado ao Oscar neste ano). Ele, apesar de exagerar em alguns transições como cortinas e raccords, inadequados à narrativa, acerta no principal: o balanceamento de humor e drama.
Se a trilha sonora é demasiadamente óbvia com sons tipicamente havaianos provenientes da hula e instrumentos nativos, o mesmo não se aplica aos agradáveis personagens “de verdade” que habitam e nos acompanham na emocionante e prazerosa viagem do ótimo Os Descendentes.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Os Descendentes”
Excelente comentário!
Muito bom mesmo.
Não sei se leste o livro?
Eu li e depois vi o filme. O filme é muito melhor e sem duvida de Cloney tem uma fantástica prestação, merecedora do oscar.
http://silenciosquefalam.blogspot.com/2012/02/filme-os-descendentes-descendants-2011.html
Abraço e bons filmes
Não li o livro, mas não concorde com a afirmação do Clooney. Não que ele não esteja bem, mas há intérpretes mais qualificados no ano.