Precisamos falar sobre o Kevin (We need to talk about Kevin, Inglaterra/Estados Unidos, 2011). Direção: Lynne Ramsay. Roteiro: Lynne Ramsay e Rory Kinnear baseado no livro de Lionel Shriver. Elenco: Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller, Jasper Newell, Ashely Gerasimovich, Siobhan Fallon, Alex Manette, Kenneth Franklin. Duração: 112 minutos.
Desde o primeiro sopro de vida, Kevin Khatchadourian demonstra uma insigne e atípica personalidade. Eva, a sua dedicada mãe, não conseguia calar nem abrandar seu intransigente choro quando bebê, e sequer o insuportável barulho de uma britadeira é bastante para dissipar a incômoda convivência. Kevin também não apresentava a disposição esperada de um bebê da sua idade nas brincadeiras com a mãe, hesitando chamá-la de mamãe e o fazendo debochadamente em raras ocasiões. Ultimamente, ele se afeiçoaria ao pai, Franklin, não honestamente, mas para provocar ciúmes e mágoas e confrontar Eva. Era a materialização do complexo de Édipo, na sua forma mais psicótica e turbulenta, uma punição diariamente imposta à mãe por tê-lo concebido. Um inferno realçado no comportamento insidioso e maquiavélico do personagem-título de Precisamos falar sobre o Kevin e na predominância dos insistentes tons rubros perfeitamente adequados na trágica trajetória de uma mãe que descobre o sadismo e monstruosidade do produto do seu ventre.
Baseado no best-seller de Lionel Shriver, o roteiro de Lynne Ramsay e Rory Kinnear assume o ponto de vista de Eva (Swinton) na narrativa temporalmente fragmentada e, ocasionalmente, simbólica, que acompanha os estágios da vida de Kevin e as chagas consequentes da chacina provocada por ele no colégio. Esforçando-se na lancinante tentativa de se aproximar do filho, Eva também cede a impulsos tão indignos quanto as maldades praticadas por Kevin (“sua ação mais honesta” é uma injustificável agressão), e lentamente supre a cobiça por um sorriso na infrutífera busca por respostas. Meticulosamente observando a progressiva demonização de Kevin, humanizado brevemente em um momento de fragilidade, o roteiro planta pistas óbvias das atrocidades do rapaz na redecoração do quarto da mãe ou no destino de um hamster. Dessa forma, o arco presenteado por seu pai causa arrepios apenas pelas possibilidades representadas, o que enriquece a ironia desse ser o armamento de Robin Hood, o único livro que sua mãe leu para ele na infância.
Construindo uma narrativa paranoica e claustrofóbica, a diretora Lynne Ramsey tortura Eva com as memórias de suas tragédias pessoais, como na repetida chegada ao colégio ou na cortina esvoaçada na brisa noturna, e a atinge com os desconfortáveis olhares inquisitivos dos habitantes da cidade, culminando no amedrontador percurso para sua casa na noite de halloween sob os olhos de jovens disfarçados de monstros ao som de Billy Holly. Assim, as músicas incidentais, a inquietante trilha sonora de Jonny Greenwood (do grupo Radiohead) e a edição sonora que salienta as batidas do coração de Eva e a intensidade do disparo de flechas constroem uma atmosfera próxima do autêntico cinema de terror, uma escolha acertada, e o afastando do também ótimo drama
Tarde Demais, com quem divide semelhanças óbvias.
Denotando a perturbação experimentada por Eva, os 30 minutos iniciais despem-se do rigor temporal e funcionam como fragmentos de um pesadelo, com planos fechados, ângulos inusitados e a inquietude da câmera em movimento. Maximizado pela insistência da cor vermelha na representação de um quase fervor infernal, a narrativa utiliza a tradicional festa popular espanhola, La Tomatina, como alegoria da anárquica vida de Eva, o que torna particularmente lírico o esconderijo escolhido por ela no supermercado, no caso, o centro do quadro, encostada e cercada por uma prateleira de sopa de tomate (indicativo de que as ações de Kevin jamais deixarão de segui-la e assombrá-la). Seguindo essa tendência, a fotografia de Seamus McGarvey aposta na paleta de cores vermelhas nos momentos capitais (novamente recordo a chegada de Eva ao colégio), e inclusive, alguns objetos cenográficos assumem o óbvio do vermelho sangue, como o cachorrinho de pelúcia da caçula Celia (Gerasimovich), uma árvore ou o alarme de um despertador.
Fluido, as transições na montagem de Joe Bini apesar de ocasionalmente óbvias, como a intensa luz na saída de uma prisão antecedente ao parto de Kevin, acertam nas elipses elegantes que ilustram o envelhecimento do personagem-título, sendo aquele que o vê no jardim empunhando um arco o mais satisfatório. O montador também se saí particularmente bem nos equilibrados cortes secos ligando as linhas temporais distintas de maneira eficaz.
Tendo como vício de origem a instintiva e intrínseca crueldade de Kevin, a narrativa é repetitiva nas maldades praticadas pelo rapaz e frustrante por desviar dos momentos em que poderia jogar mais luz na sua personalidade (
“eu sou o contexto” e
“o propósito é não ter propósito” são citações megalômanas, mas indiscutivelmente vazias e unidimensionais). Assim, mesmo que o fim da narrativa resida na personagem de Eva, o filme beneficiaria-se caso explorasse as desagradáveis facetas de Kevin, ao invés de transformá-lo no equivalente do Damien (
A Profecia). Interpretado por três atores diferentes, sobretudo Ezra Miller (adolescente) e Jasper Newell (infância), as composições pecam sensivelmente numa esperada ausência de uniformidade: enquanto Ezra tem um comportamento naturalmente psicótico e dissimulado, Jasper soa mais como um garotinho desesperado por atenção e irritantemente debochado. Consequentemente, Ezra destaca-se no niilismo e misantropia congênitos de Kevin, e como não aplaudir quando ele retoricamente retruca à mãe
“já fui alguma vez feliz?”, que o previne de ser taxado como um ser humano normal.
Já Tilda Swinton tem uma atuação minimalisticamente perfeita. Esnobada pelo Oscar, Eva parece uma mulher presa no purgatório purificando os erros do seu passado, literalmente representado pela interminável limpeza realizada na varanda da casa (suja de tinta vermelha, evidentemente). Emocionalmente oca e devastada, Tilda envelhece a olhos vistos na narrativa, exibindo uma postura derrotista de quem desistiu de buscar a verdade e deseja minimizar suas interações humanas, o que justifica a demora de 10-15 minutos para que ela solte sua primeira fala. Fechando o elenco, John C. Reilly está propositadamente apagado, sendo um adereço naquela família ao invés de um pai enérgico e disciplinador, o que o leva a ignorar solenemente as ações mais cruéis de seu filho (como o acidente sofrido por Célia) enquanto o afaga de mimos e presentes.
Perverso, embora incapaz de disfarçar a palpitante fragilidade no seu final, Precisamos falar sobre o Kevin é o inquietante retrato das responsabilidades e traumas maternas de ser mãe de um monstro apto a aterrorizar inclusive a mãe mais experiente.
P.S.: Lionel Shriver também é autora de O Mundo pós-Aniversário, um livro duro, intenso e original. Deixo essa recomendação para quem gosta de boa literatura. Eu gostei muito!
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
3 comentários em “Precisamos Falar sobre o Kevin”
Muito boas algumas de suas análises. Fiquei particularmente impressionado com as escolhas visuais da diretora, o que certamente o eleva a alguns aspectos do livro, que já é excelente. Discordo, no entando, quando se espera que Kevin fosse retratado de outra forma que não a que vemos aí. Uma vez que a história é sobre Eva e suas lembranças, ela não enxergava seu filho mais que uma pessoa unicamente má, já que, impedida e frustrada, ela raramente procurava conhecer melhor o filho. Essa visão é abandonada, logicamente, apenas na cena final, uma espécie de redenção.
Sim, claro, a cena final com todo seu impacto tridimensionaliza Kevin.
É incrível como existe tanta resenha deste filme pela net, das muitas que li, a sua tornou-se uma das favoritas, muito bem construída e com referencias bem captadas (creio eu). Parabéns 😀