François Truffaut, porém, adiciona elementos pontuais que suavizam a maldade de Julie e permitem enxergar a mulher existente antes da tragédia. Assim, a maneira alegre com que ela lida com Cookie, o filho de Morane, sugeriria uma mãe zelosa e amável. Da mesma forma, o telefone realizado à polícia inocentando uma professora falsamente incriminada a delineia focada exclusivamente no seu objetivo – assassinar aqueles cinco homens – sustando-se dos eventuais danos colaterais que poderia causar.
Fartamente explorando a confusão de felicidade e luto observados no fatídico dia do seu casamento, a simplicidade e objetividade do figurino de Julie Kohler é marcante pelo surrealismo dos trajes exclusivamente brancos ou pretos. Já a inquietante trilha sonora de Bernard Herrmann, colaborador habitual de Hitchcock, é sarcástica e eficiente o bastante para introduzir a marcha nupcial no epílogo da vingança de Julie.
É, porém, no elaborado plano de Julie onde se encerra os grandes momentos de A Noiva estava de Preto. Sem ceder a concessões sentimentais, vangloriar o instituto da vingança ou escapar da zona mecanicamente determinística das suas ações, Julie não exibe arrependimento algum de seus atos nas feições intransigentemente rígidas de Jeanne Moreau. A desesperada escusa de Morane que o disparo havia sido acidental é irrisória para que Julie obste suas ações; isto não ressuscitaria o seu marido. Nem tampouco a paixão súbita que acomete Fergus ou a fragilidade e decadência moral de Coral. Diferentemente das criações do ótimo filme de Tarantino, personagens inexoravelmente maus e amorais, os “vilões” de Truffaut são homens comuns suscetíveis, uns mais do que outros, ao fardo do crime que cometeram.
Assim, embora convivamos muito pouco com Bliss, cuja morte é a primeira (e mal orquestrada), e Delvaux seja taxado rapidamente de criminoso para conveniência do roteiro, as demais vítimas de Julie têm uma tridimensionalidade incomum para filmes do gênero. Se a bagunça do estreito apartamento é suficiente para aceitarmos a personalidade triste e desordenada de Coral, Michel Bouquet permite-se um olhar esperançoso dirigido a Julie no freeze frame no teatro e a morte dele é uma das mais poéticas simbolizando, porque não, a sedução de uma sirene antes de devorar um distraído marinheiro. Por sua vez, a descoberta de sua musa transforma Fergus em um homem gentil e emotivo, e como ele é aquele que nós passamos maior tempo juntos, é natural o surgimento de um sopro de esperança de que Julie abdique de seu plano.
Mas, é o trabalho de Jeanne Moreau que chama mais atenção. Demonstrando uma concentração invejável nos atos praticados, Julie não se distraí, nem mesmo quando seu plano aparentemente falha ao acaso, convencendo-nos de sua plena capacidade de concluir sua trajetória. Indiferente, ela parece estar sempre de luto e, diligentemente, não parece regozijar-se dos atos praticados; a vingança de Truffaut não é prazerosa como em outros filmes, nela não há conforto ou paz. Esse limiar o diretor não ousa cruzar tampouco sugerir sob pena de frustrar a velada condenação ao instituto.
Concluindo impecavelmente e sem concessões, François Truffaut desenvolveu uma obra de vingança eficiente que, apesar de pouco questionar o instituto também não o glorifica, o que se torna evidente na resignada decisão final de Jeanne Moreau e a sua frígida expressão, elementos fundamentais para concluir que a dor dela jamais amenizaria… nem as cicatrizes curariam.
* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na sexta, 3 de fevereiro, com Fahrenheit 451 (1966).
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
7 comentários em “A Noiva estava de Preto”
Um filme realmente incrível. Gosto muito da forma como o diretor arquiteta a vingança da noiva, e como isso foi lido por Tarantino anos depois. Jeanne Moreau está incrível no filme, com uma forma de interpretação maravilhosa. Muito bom ler algo revigorante sobre o filme.
O especial está lindo Márcio, parabéns!
A porpósito, como você incluiu esse esqueminha tão legal de dividir as mensagens? Hehehe
Que bom. Estou aguardando a sua colaboração em breve 🙂
O filme é principalmente Jeanne Moreau. Ela está excelente.
O Falcão Maltês
Ela é a alma do filme mesmo! Bem que você poderia fazer uma das suas ótimas compilações dela, não?
Acabei de ver. A primeira morte me deixou duvidoso com o potencial do filme, mas quando chega nas cenas do pintor até o rígido final o filme ganha uma força poética e estética incrível!
Lucas Sá
Realmente, a primeira morte é estranha e ineficaz. Mas melhora. Muito.