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A Noiva estava de Preto

A Noiva estava de Preto (La Mariée était en Noir, França, 1968). Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Jean-Louis Richard baseado no livro de Cornell Woolrich. Elenco: Jeanne Moreau, Michel Bouquet, Jean-Claude Brialy, Charles Denner, Claude Rich, Michael Lonsdale, Daniel Boulanger, Alexandra Stewart, Sylvine Delannoy. Duração: 107 minutos.

Assumidamente homenageando o cinema de Alfred Hitchcock, um de seus maiores ídolos, A Noiva estava de Preto é um intrigante exercício narrativo que mistura muitas das características do mestre do suspense com as do poeta da nouvelle vague desenvolvendo o embrião de um satisfatório, apesar de jamais soberbo, Frankenstein cinematográfico. Um experimento lisonjeiro e humilde de um mestre a outro enriquecido pela enigmática e ofídica atuação de Jeanne Moreau, no papel de Julie Kohler, uma noiva cujo marido morrera nos seus braços, nas escadas da igreja, instantes depois do  casamento, produto de um disparo efetuado de uma torre alguns metros de distância. Inegável inspiração de Quentin Tarantino para o desenvolvimento de Kill Bill, a noiva deste é completamente distinta daquela imortalizada por Uma Thurman: ela não é uma assassina contratada especializada em artes marciais. Pelo contrário, ela é uma mulher simples que, no suposto dia mais feliz da sua vida, testemunhou a morte do seu amor de infância. O que as une, porém, é o determinado e ardoroso desejo de vingança!
Baseado no livro de Cornell Woolrich, autor de Janela Indiscreta (1954), um dos maiores clássicos de Hitchcock, a história acompanha Julie no encalço dos autores do disparo assassino. Dedicando-se no prólogo a brevemente ilustrar o niilista e desapegado estado mental de Julie, o roteiro acertadamente ignora os meios que a levaram a identificar Bliss (Rich), Coral (Bouquet), Morane (Lonsdale), Delvaux (Boulanger) e Fergus (Denner) como co-responsáveis pela morte do seu marido e, praticamente de imediato, a põe no exercício do seu direito de vingança, seduzindo suas vítimas com uma charmosa morbidez e uma frieza inabaláveis.

François Truffaut, porém, adiciona elementos pontuais que suavizam a maldade de Julie e permitem enxergar a mulher existente antes da tragédia. Assim, a maneira alegre com que ela lida com Cookie, o filho de Morane, sugeriria uma mãe zelosa e amável. Da mesma forma, o telefone realizado à polícia inocentando uma professora falsamente incriminada a delineia focada exclusivamente no seu objetivo – assassinar aqueles cinco homens – sustando-se dos eventuais danos colaterais que poderia causar.

Fartamente explorando a confusão de felicidade e luto observados no fatídico dia do seu casamento, a simplicidade e objetividade do figurino de Julie Kohler é marcante pelo surrealismo dos trajes exclusivamente brancos ou pretos. Já a inquietante trilha sonora de Bernard Herrmann, colaborador habitual de Hitchcock, é sarcástica e eficiente o bastante para introduzir a marcha nupcial no epílogo da vingança de Julie.

É, porém, no elaborado plano de Julie onde se encerra os grandes momentos de A Noiva estava de Preto. Sem ceder a concessões sentimentais, vangloriar o instituto da vingança ou escapar da zona mecanicamente determinística das suas ações, Julie não exibe arrependimento algum de seus atos nas feições intransigentemente rígidas de Jeanne Moreau. A desesperada escusa de Morane que o disparo havia sido acidental é irrisória para que Julie obste suas ações; isto não ressuscitaria o seu marido. Nem tampouco a paixão súbita que acomete Fergus ou a fragilidade e decadência moral de Coral. Diferentemente das criações do ótimo filme de Tarantino, personagens inexoravelmente maus e amorais, os “vilões” de Truffaut são homens comuns suscetíveis, uns mais do que outros, ao fardo do crime que cometeram.

Assim, embora convivamos muito pouco com Bliss, cuja morte é a primeira (e mal orquestrada), e Delvaux seja taxado rapidamente de criminoso para conveniência do roteiro, as demais vítimas de Julie têm uma tridimensionalidade incomum para filmes do gênero. Se a bagunça do estreito apartamento é suficiente para aceitarmos a personalidade triste e desordenada de Coral, Michel Bouquet permite-se um olhar esperançoso dirigido a Julie no freeze frame no teatro e a morte dele é uma das mais poéticas simbolizando, porque não, a sedução de uma sirene antes de devorar um distraído marinheiro. Por sua vez, a descoberta de sua musa transforma Fergus em um homem gentil e emotivo, e como ele é aquele que nós passamos maior tempo juntos, é natural o surgimento de um sopro de esperança de que Julie abdique de seu plano.

Mas, é o trabalho de Jeanne Moreau que chama mais atenção. Demonstrando uma concentração invejável nos atos praticados, Julie não se distraí, nem mesmo quando seu plano aparentemente falha ao acaso, convencendo-nos de sua plena capacidade de concluir sua trajetória. Indiferente, ela parece estar sempre de luto e, diligentemente, não parece regozijar-se dos atos praticados; a vingança de Truffaut não é prazerosa como em outros filmes, nela não há conforto ou paz. Esse limiar o diretor não ousa cruzar tampouco sugerir sob pena de frustrar a velada condenação ao instituto.

Concluindo impecavelmente e sem concessões, François Truffaut desenvolveu uma obra de vingança eficiente que, apesar de pouco questionar o instituto também não o glorifica, o que se torna evidente na resignada decisão final de Jeanne Moreau e a sua frígida expressão, elementos fundamentais para concluir que a dor dela jamais amenizaria… nem as cicatrizes curariam.

* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na sexta, 3 de fevereiro, com Fahrenheit 451 (1966).

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7 comentários em “A Noiva estava de Preto”

  1. Um filme realmente incrível. Gosto muito da forma como o diretor arquiteta a vingança da noiva, e como isso foi lido por Tarantino anos depois. Jeanne Moreau está incrível no filme, com uma forma de interpretação maravilhosa. Muito bom ler algo revigorante sobre o filme.

    O especial está lindo Márcio, parabéns!

  2. Acabei de ver. A primeira morte me deixou duvidoso com o potencial do filme, mas quando chega nas cenas do pintor até o rígido final o filme ganha uma força poética e estética incrível!

    Lucas Sá

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