O que explica o porquê as narrativas de Truffaut permanecem oportunas hodiernamente: mantemos os mesmos vícios enxergados pelo cineasta há 40 anos. Assim como os moradores vizinhos do condomínio onde mora Antoine, a sociedade preocupa-se sobejamente com o sucesso e o fracasso dos projetos dos outros. Conhecer seus pares revela-se o vício anfêmero que consome nossos sonhos e esperanças, o que explica a mórbida e incessante curiosidade pelo misterioso novo morador, e a revelação de que ele é uma celebridade afasta totalmente a desconfiança e aguça a indiscrição dos outros vizinhos. As amizades desenvolvidas, embora inquestionavelmente valiosas, sugerem a predileção da estereotipagem: a vizinha incestuosa, o senhor solitário e caseiro, o cartunesco casal vizinho. Por que Antoine e Christine seriam diferentes? Deitados à cama lendo seus livros, praticando sexo cada vez menos regularmente e abraçando a rotina de visitas e jantares pouco interessantes, o nascimento de Alphonse, apresentado no belo raccord da montagem de Agnès Guillemot, sacode o casamento, não poderia ser diferente, mas gradualmente se transforma na nova rotina do casal.
Reflexo presente no uso abundante e apaixonado de espelhos enriquecendo a bem elaborada mise-en-scène como na discussão no plano de fundo durante uma conversa despretensiosa de Antoine ou a imposição de uma multa vista discretamente no pórtico da vila. A simultaneidade das ações escancara a banalidade dos problemas domiciliares de Antoine – todos têm seus problemas para lidar -, os quais são definitivamente sedimentados no irônico plano final nas escadeiras do condomínio, durante a repetição de um incidente envolvendo o casaco e a bolsa de sua mulher. O que, por sua vez, não diminui o afeto existente nas confissões de Antoine e Christine a pessoas diferentes, e que na montagem de Guillemot, parece estar dirigindo as doces palavras uns para outros, complementando e preenchendo os vazios estéticos (a lógica plano e contra-plano), narrativos e intrínsecos aos personagens.
Reacendendo sua admiração ao cinema de Alfred Hitchcock na sibilina dúvida dos vizinhos acerca da identidade do morador e, especialmente, na revelação de uma mulher trajando vestes japonesas (não há como não pensar na revelação de Norman Bates nos trajes de mulher em Psicose), Truffaut com maestria e naturalidade encontrou na trivialidade do homem-comum a pista para investigar o mistério da morte prematura de cada um de nós, vítimas da monotonia diária e da não-realização das grandes expectativas que traçamos (no caso, o livro escrito por Antoine). Felizmente, ele também revela que há uma salvação existente entre a sensibilidade da reconciliação e otimismo de um novo dia.
* Esta crítica faz parte do Especial François Truffaut do Cinema com Crítica que continua na quarta, 15 de fevereiro, com As Duas Inglesas e o Amor (1972).
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
5 comentários em “Domicílio Conjugal”
Esse tributo a Truffaut tá ótimo, Márcio. Estou à espera de A HISTÓRIA DE ADELE H. e O ÚLTIMO METRÔ.
O Falcão Maltês
A História de Adèle H. está nas mãos de um dos colaboradores, o Tiago Brito do Cinema Detalhado. O Último Metrô está um pouco mais longínquo.
Me interessei muito pelo filme, principalmente por ser continuação de Beijos Proibidos. Aliás, muito interessante a relação que você faz com outras obras da saga do personagem. E fiquei mais instigado ainda pelas aparentes referências ao mestre Hitchcock!
A referência a Hitchcock é breve, mas óbvia.
Tem, para concluir as aventuras de Antoine Doinel, Amor em Fuga.
O que você quis dizer com "monotonia de um olhar burguês" no inicio da crítica?