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O Quarto Verde

(La chambre verte), França, 1978. Direção: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault, baseado nos livros de Henry James. Elenco: François Truffaut, Nathalie Baye, Jean Dasté, Patrick Maléon, Jeanne Lobre, Antoine Vitez, Jean-Pierre Moulin, Serge Rousseau, Jean-Pierre Ducos, Annie Miller, Marie Jaoul. Duração: 94 minutos.

A morte recorrentemente esteve presente na obra de François Truffaut pontuando romances trágicos (Jules & Jim ou As Duas Inglesas e o Amor) e estabelecendo os essenciais conflitos narrativos (A Noiva estava de Preto, A Sereia do Mississípi ou Uma Jovem tão Bela como Eu). Nunca, porém, a morte havia permeado persistentemente o trabalho do poeta da nouvelle vague quanto neste O Quarto Verde; irônica e tragicamente, este é seu último trabalho em frente às câmeras, vindo a falecer vítima de um tumor cerebral 6 anos depois. 

Escrito por Truffaut e Jean Gruault, adaptado dos romances de Henry James, o roteiro é um estudo de personagem de Julien Davenne, homem obcecado pela morte após vivenciar a carnificina da 1ª guerra mundial e testemunhar o súbito falecimento da esposa Julie, com somente 22 anos de idade. Dedicando a ela um cômodo no qual venera seu espírito, Julien acredita que “os mortos permaneçam vivos” e a presença deles pertinazmente acompanha aqueles que os abraçam. Um conceito mórbido que o afasta terminantemente de Cecília Mandel (Baye), a qual acredita na superação da memória dos mortos.
Embora sugira apenas superficialmente o envolvimento de Julien e Cecília, na oportuna realização de um leilão, a narrativa ocupa-se de um estudo de personagem profissional e socialmente abrangente, mas pessoalmente oco, jamais conseguindo decifrar exatamente àquele trágico sobrevivente da grande guerra. Portanto, se seu trabalho redatorial no empobrecido jornal Le Globe o prende à cidade, tendo escrito 31 artigos obituários, reputadamente sem repetição de um adjetivo sequer, é mais difícil admitir a perturbação no funeral de um antigo “amigo” e a indignação ao descobrir que um conhecido recém viúvo casou-se novamente. Tais aspectos da personalidade o aproximam de uma obstinada caricatura que ama os mortos contra os vivos, uma bizarra e corrupta obsessão que o leva a exibir imagens da guerra ao pequeno garotinho surdo-mudo interpretado por Nathan Miller.
Por outro lado, tecnicamente o filme complementa a alma turva de Julien com a fotografia quase expressionista de Néstor Almendros, apostando nas sombras e escuridão, especialmente na construção do santuário subterrâneo embaixo da igreja. O escurecimento das cores agrega à infeliz fisionomia de Julien traços de um mórbido determinismo ressaltado na inquisidora forma com que questiona valores religiosos de um padre católico durante um velório (“quem perde alguém não quer esperar 20 ou 1000 anos para reencontrá-lo; quer agora”). Além disso, o retrato contemplativo da morte esboçado por Truffaut tem reflexo na boa montagem de Martine Barraqué, a qual investe em boas elipses e transições – o raccord da foto de Julie a sua lápide ou a sobreposição dos eventos na guerra e o abatido semblante de Julien – e na direção de arte de Jean-Pierre Kohut-Svelko, sobretudo nas velas que representam o lugar de descanso dos “seus mortos”.

Descobrindo significados no anel em forma do número ‘8’, o qual é impossível não remeter ao infinito, ultimamente o destino final dos mortos, e o manequim de cerâmica moldado à imagem e semelhança de Julie, consumido por chamas similares àqueles que alimentaram a destruição do templo de Julie, você sabe que está na égide da existência ao descobrir que conhece mais mortos do que vivos e de se ver frequentemente enterrando amigos e parentes.
Decifrar exatamente o que Julien desejara e idealizara é, infelizmente, encoberto pelo véu mortuário. Sonhara ele permanecer, eternamente, despedindo-se em fúnebres obituários daquele que “amou”? Ou abdicar da existência seria o único meio de reencontrar-se com o amor de sua vida? De toda forma, a última das velas acesas não ilumina essa característica enegrecida de Julien, mas ao menos, confere uma dimensão irônica ao desfecho de um trabalho completamente diverso daqueles de toda a carreira de François Truffaut.
Afinal de contas, não há nada de emocionante ou sentimental na morte que o poeta da nouvelle vague pudesse rechear e adocicar uma narrativa.

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