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François Truffaut nos sets de A Noite Americana |
A vida tem um senso de humor curioso e basta uma discreta olhadela na vida de François Truffaut para compreender isto. Abandonado pelo pai antes do nascimento e criado pela avó, que lhe incutiu o amor pelas artes, o jovem retornou, ou melhor, pisou pela primeira vez na casa da mãe e do padrasto, de quem aproveitou o sobrenome, apenas no decorrer da infância. Mas este não era um lar na acepção da palavra! Desprezado por aqueles que deveriam amá-lo incondicionalmente e afastado da manifestação carinhosa do afago materno, o jovem François encontrou sua verdadeira casa na mística sala de cinema e, ironicamente, desenvolveu um dos olhares mais sensíveis pela infância e relacionamentos já vistos até os dias de hoje. Sua influência foi tamanha que grande parte da produção cinematográfica francesa contemporânea invariavelmente flerta com o naturalismo sentimental proposto nas narrativas do jovem poeta da nova onda do cinema francês.
Havia um turbilhão de sensações borbulhando na mente revolta de Truffaut o que viria a se refletir na sua juventude atribulada e rebelde. As escapadas do colégio ocorriam com frequência, a vida na casa da mãe tornou-se insustentável e, não raramente, o jovem fugiria de casa para a casa de seu melhor amigo Robert Lachenay e cometeria pequenos delitos para sua subsistência. Mas, o seu amor (e obsessão) pelo cinema e as artes, de maneira geral, acentuavam-se para que, aos 14 anos, o cineasta tomasse as rédeas de sua própria educação e estabelecesse a meta de assistir a três filmes diários e a ler três livros semanais. E não demoraria para que o autodidatismo rendesse frutos e o renomado crítico André Bazin o acolhesse debaixo de suas asas, exercesse a proteção paterna que Truffaut jamais experimentara e lhe abrisse definitivamente as portas do universo cinematográfico na recém formada revista de cinema Cahiers du cinéma.
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François Truffaut entrevistando o lendário Alfred Hitchcock |
Foi nesse período que André Bazin elaborou a Teoria do Autor, a qual influenciou decisivamente a carreira de François Truffaut. Em linhas gerais, essa Teoria afirmava que o Diretor era o primeiro “autor” de um filme, sua visão criativa e influências pessoais e estilísticas se destacariam mesmo diante de trabalho naturalmente coletivo e repleto de interferências da indústria materializadas nos anseios dos produtores (A Noite Americana e O Último Metrô, este ambientado no universo do teatro, advogam em favor da Teoria do Autor e transformam o Diretor no centro das atenções do processo artístico). Isso levaria o intransigente jovem, então crítico, a tecer ataques à produção francesa daquele período, a seu ver engessada e previsível, e a defender a visão autoral no nome do mestre do suspense, Alfred Hitchcock.
Tamanha era sua admiração que muitos de seus filmes carregam a assinatura Hitchcockiana (Atirem no Pianista, A Noiva estava de Preto, A Sereia do Mississipi, De Repente, Domingo!). Entretanto, embora os elementos característicos do cinema de Hitchcock estavam lá, o autor permanecia sendo Truffaut com a sua distinta sensibilidade e apuro visíveis a cada novo quadro. Era uma afirmação incontestável daquilo que ele defendeu no Cahiers du cinéma! Aliás, seu respeito por Hitchcock extravasaria as salas de projeção na lendária entrevista de mais de 50 horas, posteriormente publicada no livro Hitchcock/Truffaut, na qual ambos discutiram os filmes do mestre do suspense elaborando, nas palavras do francês, uma espécie de receita de bolo para quem desejasse fazer cinema.
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Claude Leloch, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Louis Malle e Roman Polanski |
Diferente, porém, de outros cineastas, a única escola de François Truffaut foram as salas de cinema. Movido pelo amor incondicional à sétima arte e com apenas 27 anos de idade, nasceu a mais autobiográfica de suas histórias, o seu primeiro longa metragem e um dos melhores trabalhos Os Incompreendidos. Premiado no Festival de Cannes e indicado ao Oscar de melhor filme, a narrativa inaugurava a cinessérie cinematográfica de Antoine Doinel, o alter ego do cineasta interpretado por seu ator-fetiche Jean-Pierre Léaud, e remontava à infância do cineasta, ao seu relacionamento conturbado com a mãe, a suas desavenças sociais, ao ingresso no serviço militar e ao amor ao cinema culminando em um dos momentos mais ímpares e antológicos da sua filmografia, o enigmático olhar de Antoine ao nunca antes visto mar. Olhar que viria a ser revisitado noutros momentos de sua vida nas continuações Beijos Roubados, Domicílio Conjugal e O Amor em Fuga.
Ademais, Os Incompreendidos juntamente com Acossado de, seu então amigo, Jean-Luc Godard, dava início a nouvelle vague. Movimento cinematográfico revolucionário, a nova onda do cinema francês adotava os preceitos existentes na Teoria do Autor elaborando filmes que desvirtuavam a previsibilidade existente na estanque produção pretérita. Com orçamentos reduzidos, improvisações e histórias existenciais e sentimentais que abordavam o naturalismo do estilo de vida burguês da classe média francesa, os cineastas da nouvelle vague punham as câmeras em cima dos ombros e saíam às ruas filmar, longe do conforto dos estúdios, longas tomadas externas antes inimagináveis. Esse inconformismo com os padrões rígidos do cinema influenciou uma geração de novos cineastas, como Robert Altman e Martin Scorsese, e ajudou na evolução natural das técnicas de fotografia, especialmente a iluminação, e de montagem, com cortes secos, jump cuts, dentre outros.
Mas, se fazer cinema era um esforço romântico e apaixonante para François Truffaut, que infundia nas suas obras impulsos, sentimentos, anseios e sensações provenientes do âmago de um eterno garoto, não demoraria para que seus caminhos divergissem totalmente dos do iconoclasta e revolucionário Godard. Mais interessado em fazer uma abstração e desvirtuação plena da linguagem unicamente para saciar a si mesmo e seus amigos intelectuais, Godard viria a acusar Truffaut de ter se vendido para o sistema. Os dois não voltariam a se falar mais e trilhariam rumos tão diferentes quanto o cinema pode ser. Para maiores detalhes dos dois cineastas e o nascimento do movimento recomendo o documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague.
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François Truffaut, Claude Jade e Jean-Pierre Léaud nos sets de Domicílio Conjugal |
Felizmente, o caminho escolhido por Truffaut era de rosas, algumas vestidas de espinhos, todavia resplandecendo de amor e brilho. Seus filmes flertavam com a intransigência e violência das paixões e a insatisfação do ser humano nos relacionamentos; não por menos, algumas de suas principais obras primas findavam-se em triângulos amorosos, traições e romances insustentáveis, como é o caso de Jules & Jim, As Duas Inglesas e o Amor e A História de Adèle H., a filha do poeta Victor Hugo. Ele também detinha um olhar puro e afetuoso à infância como no doce Idade da Inocência, e mesmo que Os Incompreendidos mostrava o lado mais trágico de ser criança, saber que haveria um final feliz para Antoine Doinel supre o pesar do abandono e do escapismo. E, se quando gostava de brincar de Hitchcock o diretor escorregava pontualmente, a “trilogia das artes” sedimentou alguns dos filmes essenciais do cineasta: Fahrenheit 451, literatura, O Último Metrô, teatro, e sua maior obra prima, A Noite Americana, cinema.
Neste último, aliás, o diretor punha em prática um talento recém descoberto em O Garoto Selvagem: o da atuação. Na pele de Ferrand, o diretor do filme dentro do filme, Truffaut lança um olhar sobre si próprio, demonstra ter medos e angústias nos convidando a conhecer alguns de seus pesadelos e se revela um homem sensato e razoável nos sets de filmagem, reconhecendo a importância do menor dos integrantes para produção de bom filme. Sua qualidade impressionou Steven Spielberg, que o convidou a protagonizar Contatos Imediatos do Terceiro Grau, algo que Truffaut aceitara humildemente (para surpresa de Spielberg).
Dono de uma simpatia que conquistaria muitos ao seu redor, alegre, humilde e apaixonado pelo que fazia, a morte prematura aos 52 anos vítima de um tumor cerebral, ironicamente, viria a reconciliá-lo com Godard que o reconheceu como o maior crítico de cinema que já existira. Ele foi além. Provou que amar e criticar poderiam ser sinônimos e que cinema é mais do que uma sequência de imagens, é sentimento em forma de película. A partir de agora, depois que olhar um filme francês, para não fugir muito, lembre-se que em uma parte dele existe um pouco de François Truffaut.
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François Truffaut e Jean-Pierra Cargol em O Garoto Selvagem |
Se desejar conhecer mais da obra deste impressionante cineasta, visite o
especial elaborado com as críticas dos 21 longas metragem do diretor.
Filmografia completa:
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959) *****
Atirem no Pianista (Tirez sur le Pianiste, 1960) ***
Jules & Jim – Uma Mulher para Dois (Jules et Jim, 1962) *****
Um só Pecado (La Peau Douce, 1964) **
Fahrenheit 451 (1966) ****
Noiva estava de Preto, A (La Mariée était en Noir, 1968) ****
Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1969) ****
Sereia do Mississipi, A (La Sirène du Mississipi, 1969) **
Garoto Selvagem, O (L’Enfant Sauvage, 1970) ***
Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970) ****
As Duas Inglesas e o Amor (Les Deux Anglaises e le Continent, 1971) *****
Uma Jovem tão Bela Como Eu (Une Belle Fille Comme Moi, 1972) ***
A Noite Americana (La Nuit Americaine, 1973) *****
A História de Adèle H. (L’histoire de Adèle H., 1975) *****
Idade da Inocência (L’argent de poche, 1976) ***
O Homem que Amava as Mulheres (L’homme qui amait les femmes, 1977) *****
O Quarto Verde (La Chambre Verte, 1978) ***
O Amor em Fuga (L’Amour em Fuite, 1979) ***
O Último Metrô (Le dernier métro, 1980) *****
A Mulher do Lado (La femme d’à côté, 1981) ****
De Repente num Domingo (Vivement Dimanche!, 1983) ***
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Grandes Diretores: François Truffaut”
Bacana… e pra reforçar o especial, se tem um livro que todo cinéfilo precisa ler é esse: Hitchcock/Truffaut
Sensacional seu texto. O final me arrepiou! É visível a paixão que você desenvolveu por Truffaut ao longo desse especial maravilhoso – e corajoso -, que contou com críticos e escritores talentosos. Você abriu sua "casa" para os amigos assim como o mestre francês abria para o cinema. Voltando à este texto, várias informações interessantes, mescladas com uma paixão na escrita, que toca o leitor e revela a genialidade de François Truffaut. Além disso, as fotos utilizadas são míticas, em? A com o Polanski já tinha visto e adorado! Enfim, parabéns por esse grande especial, Marcio!