Conceitualmente análogo ao japonês “Batalha Real” e apresentando o sadístico furor do ser humano em estar a par da violência a seu redor (como em “Rollerball” e “O Sobrevivente”), o roteiro escrito por Gary Ross, Billy Ray e a própria autora do romance Suzanne Collins nos apresenta a um futuro distópico que, depois de destruído por uma guerra civil, formou uma nova nação denominada Panem dividida em 12 distritos e a Capital. Para preservar a paz, a Capital organiza os jogos vorazes do título, um reality show que envia 2 jovens de cada distrito (os Tributos) escolhidos aleatoriamente para sobreviver nas longínquas florestas e matar uns aos outros até que reste apenas um vencedor. Durante a loteria da 74ª edição, para evitar que sua irmã menor Prim Everdeen (Shields) seja um dos Tributos, Katniss (Lawrence) se voluntaria para representar o 12º distrito e disputar do lado Peeta Mellark (Hutcherson) os jogos.
Dividido em dois momentos narrativos, antes e durante os jogos, os roteiristas apresentam a imperiosa necessidade de amealhar patrocinadores nos treinamentos e demonstrações, e a urgência de conquistar fãs e simpatizantes no show de entrevistas de Caeser Flickerman (Tucci, soberbo), e embora ambos não pareçam relevantes ou capazes de produzir efeitos decisivos e práticos no jogo de sobrevivência, ao menos são divertidos para dissecar a bizarra e extravagante sociedade escondida detrás dos muros e edificações pomposas da Capital. Um lugar em que apenas é natural o orgulhoso sorriso de um pai ao ver o recém presenteado filho desfilando golpes de uma espada de brinquedo por se tratar do subproduto de uma sociedade que, ao banalizar a violência aproximando-se dos televisores, e se distanciando simultaneamente do foco da ação, metaforicamente logrou a paz.
O que também está evidenciado nos aspectos técnicos da direção de arte de Phillip Messina e os figurinos de Judianna Makovsky. Construindo a Capital muito próxima do totalitarismo nazista, inclusive nos galhardetes vermelhos e na águia de contornos simétricos, afetada por um estilista proveniente de algum livro de Lewis Carroll ou filme de Tim Burton, o desfile de manequins, penteados, barbas e acessórios comunica mais daqueles habitantes do a predileção por ver jovens digladiando-se (a apresentação deles ao povo, não por menos, se faz sobre bigas). Ademais, isto enfatiza o contraste da Capital e dos distritos mais distantes habitados por humildes e sujos campesinos, caçadores, pescadores e mineradores cujo produto do labor alimenta o topo da pirâmide sem, contudo, auxiliar na solução dos seus problemas, como a fome de Katniss revisitada em um flashback.
Dirigido pelo talentoso Gary Ross ( “A vida em preto e branco” e “Seabiscuit”), a narrativa foge dos ordeiros padrões de blockbusters ao investir em uma câmera trêmula e inquieta, transmitindo bem a insegurança e ameaça existente nos jogos (confundida por alguns como trunfo, vangloriando-se de serem Tributos – e a literalidade existente no nome chega a assustar). Por sua vez, a reduzida profundidade de campo remonta à dificuldade de Katniss em se relacionar e construir amizades e alianças. Até as confusas sequências de ação, montadas por Stephen Mirrione e Juliette Welfling, têm o propósito de convergir numa espécie de não glorificação da violência, tornando-a suja, inconstante e brutal, como na carnificina inicial depois da contagem regressiva do início dos jogos.
Além disso, é recompensadora a ousadia dos realizadores em não esconder e minimizar a inerente violência que permeia a sobrevivência do mais forte. Das imagens de crianças e jovens cruelmente mortos à deformada face de uma jovem atacada por vespas anabolizadas, Gary Ross e sua equipe, apesar de conscientes da classificação indicativa que o filme deva ter, confiam (e valorizam) no (o) seu público mostrando uma visão crua e realista daquele universo ao invés de dar ‘tapinhas nos seus ombros’ ou usar a narrativa como desculpa de um romance tolo. Esse realismo também se manifesta nas decisões de introduzir zumbidos (clichê, mas eficiente) depois da explosão de uma pilha de suprimento ou na câmera subjetiva e perda de foco em um ataque.
Logo, é decepcionante que os roteiristas incluam uma covarde mudança de regras no início do terceiro ato usada como desculpa para solidificar um romance (sim, o romance tolo que acabara de citar) e de abrir margens a um desfecho que flerta com “Romeu & Julieta”. Deste momento em diante, aliás, há uma vertiginosa queda em qualidade, com a obrigatoriedade de um vilão de confessar determinado assassinato, um deus ex machina, monstruosos animais e a aborrecida luta contra o vilão Cato (Ludwig, um ator limitadíssimo) sobre a Cornucópia.
Contando com a bela e excelente atriz Jennifer Lawrence, Katniss é uma jovem corajosa e determinada, uma heroína de fato, que não hesita em se sacrificar pelos outros e em se demonstrar merecedora da nossa atenção irrestrita. Enquanto isso, Josh Hutcherson, um ator que nutro certa antipatia, ao menos se esforça em tornar Peeta um sujeito digno do carinho de Katniss, e a engraçada camuflagem dele é crucial para abandonar o preconceito ao ator. Finalmente, nomes famosos como Elizabeth Banks, Lenny Kravitz, Wes Bentley, Donald Sutherland, Toby Jones e Woody Harrelson (mais contido que o de costume, apesar de interpretar um sujeito alcoólatra) agregam atuações dignas e dão mais valor a estreia desta franquia nos cinemas.
E, a considerar pelos elementos deixados propositadamente inexplicados (embora o filme tenha um desfecho satisfatório), o sucesso no fim de semana de estreia e o retorno positivo do público e críticos, a franquia de “Jogos Vorazes” tem tudo para conquistar o vazio deixado anualmente por um certo bruxo famoso. O primeiro bom passo já foi dado para isso!
P.S.: não fazer nenhuma comparação com Crepúsculo é a única forma de mostrar quão completamente diferentes os dois trabalhos são! A começar pelas suas protagonistas, mas deixo as polêmicas para depois.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
16 comentários em “Jogos Vorazes”
Tenho lido bons elogios aos filme, mas honestamente não sei se me interesso em assisti-lo. Acredito que em breve eu o farei, mas, por enquanto, fico na expectativa de novos textos, como o seu, que falem mais dessa obra.
Texto excelente sobre a obra.Parabéns.Abs.
Excelente texto, mas não acredito que o filme deva receber uma nota tão elevada. " A saga que vai se equiparar a crepúsculo e Harry Potter" Acredito que deixou a desejar. No início do filme cheguei a ficar enjoada com a câmera, mexendo sem parar e não focando o ambiente inteiro, deixando as coisas cortadas, algo que já me deixou com um " pé atrás" sobre o filme, mas resolvi relevar. Não pude deixar de comparar as obras, a riqueza de Harry Potter é 10 a 0 em jogos vorazes, eu li o livro e esperava algo melhor, me decepcionei um pouco. Os personagens acredito que esses foram fiéis, e muito bem interpretados! Me incomodei com um detalhe da Katniss, pois no livro quando ela viu que o Peeta estava com os profissionais, ela dá um sorriso para a câmera e faz todos acreditarem que era combinado, e no filme ela ficou preocupada. Mas nada é igual ao livro, certo? Enfim, espero pelo próximo filme, que ele equilibre mais ( de certo como foi com crepúsculo)
ogos vorazes:DECEPCIONANTE…para não dizer "coisa" pior…o que prestou?Foram uns 40 min do filme(a parte da disputa entre os distritos)….o resto(o filme dura mais de 2h) uma droga!!Não percam o" suado dinheirinho " de vocês…
ogos vorazes:DECEPCIONANTE…para não dizer "coisa" pior…o que prestou?Foram uns 40 min do filme(a parte da disputa entre os distritos)….o resto(o filme dura mais de 2h) uma droga!!Não percam o" suado dinheirinho " de vocês…
Desculpe-me Washington, mas parece que você se atentou apenas as cenas de ação do filme,na minha opinião o mais fascinante na verdade foi o fundo filosófico de sua história acredito que vc não se atentou a este detalhe o que é uma pena, a mensagem principal de Jogos Vorazes você não capitou, como por exemplo, manipulação da massa através da mídia televisiva,interesses políticos,e a falta de humanidade nas pessoas mais abastadas financeiramente, infelizmente perdeu o melhor do filme.
Eu não estava muito curioso por esse filme, mas já que a critica tá elogiando bastante, irei conferir. Mas parem de comparara com Crepúsculo e Harry Potter, please! São coisas totalmente diferentes!
http://cinelupinha.blogspot.com.br/
Não fiquei curioso…
O Falcão Maltês
Quando o assisti ontem, entrei e permaneci em uma dúvida que permeia ao fato do que era "real" ou não. O romance era real ou era apenas um meio de conquistar a atenção e simpatia dos patrocinadores? Dentre outros questionamentos que me fiz durante o filme, que nao recordo no momento.
Enfim, gostei da crítica. Em contrapartida, eu daria 3 estrelas somente.
Isabella Barollo
Jogos Vorazes é um estouro – digo, em bilheterias. Eu ainda não tive a oportunidade de conferir, mas ainda nesse fim de semana vou passar no cinema para assistir. Todos vem falando muito bem, apontando como uma promissora franquia. E, sinceramente, o público precisa disso. Como disse, Harry Potter faz falta – e Crepúsculo nunca terá potencial para substitui-lo. Espero um trabalho de qualidade. Quando ver comento melhor!
Bom filme…..Exige um pouco mais de maturidade do público….quem se liga só em ação perderá o melhor do filme….
Ótima crítica…impossível ignorar o aspecto sócio-político….Mas NÃO é um filme pesado, cerebral …Jovens, assistam…Adultos , assistam tambem….Vale a pena…..
O cartaz e a divulgação do filme foram dirigidos aos adolecentes…claro, eles são maioria entre os frequentadores de cinema….Mas, adultos, podem ir sem medo….e levem os adolescentes junto…todos vão gostar…
É claro que não existe perfeição…..mas, eliminar romancezinhos adocicados e falsos já é um grande avanço…colocar uma mulher como a heroína é um afago no nosso bom gosto …incluir um pouco de complexidade e dubiedade nos atos e comportamentos do personagens instiga a nossa curiosidade e atenção…deixar de lado a hipocrisia , então, é uma festa para nossa alma….
realmente nada se compara a um bom livro, e alem de que tem filmes que não chegam nem aos pés da mensagem que um livro passa. mas as suas criticas sobre filmes são maravilhosa
realmente nada se compara a um bom livro, e alem de que tem filmes que não chegam nem aos pés da mensagem que um livro passa. mas as suas criticas sobre filmes são maravilhosa