Lawrence of Arabia, Inglaterra, 1962. Direção: David Lean. Roteiro: Robert Bolt e Michael Wilson baseado nos escritos de T. E. Lawrence. Elenco: Peter O’Toole, Alec Guinness, Anthony Quinn, Omar Sharif, Jack Hawkins, José Ferrer, Anthony Quayle, Claude Reins, Arthur Kennedy, Gamil Ratib, Michel Ray e Zia Mohyeddin. Duração: 216 minutos.
De mortuis nihil nisi bonum. Afronta a etiqueta social tecer comentários desdenhosos a respeito de recém falecidos, afirma o ensinamento latim. Esta é a explicação para que, em frente ao busto do oficial inglês T. E. Lawrence, morto após um acidente de moto, um generoso companheiro do exército o caracterize como “o homem mais extraordinário que já conheceu“, enquanto os demais mostram-se comedidos, conservando os adjetivos menos adulatórios para o sussurro íntimo. Personagem tão grandioso, fascinante e controverso, apenas poderia caberia nos livros da história e nas dimensões do épico dos épicos, como é carinhosamente conhecido, Lawrence da Arábia, o grande vencedor do Oscar de 1962 com sete prêmios e um dos mais ousados empreendimentos cinematográficos da história.
Escrito a partir dos manuscritos do próprio T. E. Lawrence, a ambiciosa narrativa dirigida pelo visionário David Lean acompanha a intervenção do jovem oficial britânico do título, interpretado por Peter O’Toole, entediado com a função burocrática exercida no Cairo e enviado para o deserto colher informações do povo árabe comandado pelo príncipe Feisel (Guinness). Movido por sentimentos de grandiloquência e altruísmo entrelaçados de forma una e indissociável, Lawrence alia-se a Sherif Ali (Shariff) e Auda Abu Tayi (Quinn), ameniza os atritos internos existentes entre as tribos, unificando-as ao redor de um objetivo comum: derrotar o império turco otomano e devolver ao povo árabe as terras tomadas de seus pais.
Mas, o que move aquele forasteiro de pele alva e intensos olhos azuis no meio das brutais tradições de um povo conservador e supersticioso? A princípio um jovem destemido e apaixonado pela calmaria do deserto e as possibilidades de uma aventura; não tarda, porém, para a adoração brotada nos seus comandados conduzi-lo à cega vaidade, um autoproclamado Moisés destinado a resgatar aquele povo, alguém que não precisaria temer os tiros inimigos ou se curvar a convenções inglesas no retorno à civilização. “
Você acha que eu sou apenas mais um?“, retruca Lawrence enfurecido após crítica de Sherif Ali, e ingenuamente, ele não enxergava que diminuto naquele vasto e árido mar amarelo, a resposta não poderia ser outra que não afirmativa.
Esse narcisismo messiânico e exibicionista, por sua vez, viria a ser uma falha de caráter menos grave se comparada à recém descoberta beligerância. Se antes Lawrence se ofende com um assassinato brutal, ao ser obrigado a executar a lei de Talião, ele descobre gostar de poder tirar a vida alheia. Curiosamente, a vítima era alguém por quem ele se sacrificara para salvar, o que se torna uma sina na sua vida, amaldiçoado a ver aqueles próximos e submissos padecerem por atos diretos e indiretos. Tendo posto em cheque a sua suposta aura intocável no território turco, e falhando miseravelmente no intento, Lawrence sucumbe ao lado mais negro e despudorado de sua existência e as ordens de “Não fazer prisioneiros!” na invasão a Damasco revelam a monstruosidade de um homem que não hesita de matar alguém que acabara de se render.
Assim, compreender as camaleônicas nuances da personalidade de Lawrence e despi-lo de sua túnica é a principal aventura desta lendária superprodução, onde os violentos embates servem não para expor as virtudes técnicas da narrativa, e sim para desenvolver um dos estudos de personagem mais instigantes já desenvolvidos pelo cinema. Trabalho este que teria sido em vão se faltasse a um jovem Peter O’Toole sobretudo intensidade, dom que brota do admirável olhar magnético, da dicção cadenciada e imponente e da sutil evolução de seu semblante, culminando na amarga descoberta de não pertencer a povo algum, seja inglês ou árabe, independentemente do esforço empregado.
Visualmente, Lawrence da Arábia também é um esforço dos mais admiráveis e a fotografia de Freddie Young decisiva, superando obstáculos naturais típicos do deserto, como o reflexo da luz solar na areia que, nas mãos de profissionais menos competentes, poderia estourar e arruinar a qualidade do filme. É dele a icônica tomada onde Sherif Ali surge à distância como uma miragem, apesar de que mesmo nos melhores televisores, o efeito acabe prejudicado por ter sido criado exclusivamente para a vastidão da tela de cinema. Além do mais, redefinindo o cinema-espetáculo, a narrativa não economiza em planos gerais ambiciosos que revelam a infinitude da região, e municiam o espectador a explorar mais um pouco de Lawrence: seria aquela árida e ingrata liberdade, inexistente nos apertados escritórios ingleses, o que ele tanto almejara ao longo da vida? Um questionamento que de forma alguma soa exagerado, especialmente considerado que sua morte provêm da inconsequente condução de uma moto em altíssima velocidade.
Acompanhado pela inesquecível trilha de Maurice Jarre, há cômodas maneiras de se recordar desta figura histórica, peça chave na revolução árabe e alguém tão complexo que adjetivos, ultimamente, mostrariam-se vazios para descrevê-lo plenamente. Não tenho a ousadia de fazê-lo. Contento-me em afirmar que Lawrence foi um mito envolto de incertezas e mistérios, uma lenda eternizada pelo cinema e a prova incontestável de que não se fazem mais “heróis” como nos grandes clássicos! O resto, as quase 4 horas deste épico, encarregam-se de revelar.
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T. E. Lawrence observa, à distância, Sherif Ali emergindo de uma miragem. |
Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, O Homem que Matou o Facínora.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
3 comentários em “Lawrence da Arábia”
O visual e a fotografia, na minha visão são o grande espetáculo do filme. Uma aula de magia cinematográfica.
Assisti a "Lawrence da Arábia" com meu pai quando era pequeno. Lembro de algumas coisas do filme, não todas, mas relembro agora em alguns detalhes da crítica. Acho que a maneira quase romanceada com que você escreve, Márcio, acaba sendo o que eu mais admiro em seus textos. Não é apenas um texto técnico (apesar de também sê-lo), mas é um escrito inspirado sobre um filme que o tocou de alguma forma. Percebo isso nas suas críticas e nas do João e do Eduardo. Não são críticos de "recomendo!" ou de gracinhas, são reflexivos.
Enfim, queria só dizer que tens um fiel leitor do seu blog.
Abração!
Márcio, parabéns. Lawrence da Arábia é um dos filmes mais difícil de criticar (te disse, inclusive, que teria um pepino nas mãos), mas você o fez muito bem. Apesar das inúmeras mudanças do personagem, você conseguiu analisá-lo muito bem. O filme é uma verdadeira aula de construção de personagem. Como disse, o épico dos épicos!