Nóz w wodzie, Polônia, 1962. Direção: Roman Polanski. Roteiro: Roman Polanski, Jakub Goldberg e Jerry Skolimowski. Elenco: Leon Niemczyk, Jolanta Umecka e Zygmunt Malanowicz. Duração: 94 minutos.
Polônia. Andrzek e Krystyna dirigem-se a uma marina para um passeio de barco debaixo do escaldante sol. Ele, rico e um dos poucos proprietários de um carro na região; ela, de pele demasiadamente bronzeada, não evoca quaisquer sentimentos aparentes, afora um visível distanciamento. Poderia ser verão, mas não é isto que sugerem as árvores ao longo do estreito caminho rumo ao paradisíaco isolamento planejado pelo casal. Sem vestígios de folhagem e de galhos retorcidos, alguém certamente afirmaria este ser o inverno, o que eu não discordaria. É sobre este explícito contraste que se assenta o primeiro longa metragem do fascinante diretor Roman Polanski, A Faca na Água.
De simplicidade arrebatadora, minimalismo extremo, ambiguidade moral e desafiador tecnicamente, A Faca na Água acompanha, ao longo de pouco mais de um dia, o suspense emanado no embate sociopsicológico entre o casal mencionado no parágrafo anterior e um jovem, que quase atropelado, apenas buscava carona para a cidade vizinha. Depois deste encontro surreal, Andrzek convida o rapaz, cujo nome não é revelado, para subir no barco e auxiliá-lo a pô-lo no curso, enquanto debocha de sua falta de habilidade no manejo do leme ou no içar de velas. Ciente, porém, do agir de seu anfitrião, o jovem não hesita de tacitamente oferecer sua moral e honra em troca de uma breve estada no alto escalão da sociedade; já Krystyna, enigmática em seu olhar vazio e alheio, parece encantada (e curiosa) pelo convidado, o que levará a um silencioso triângulo amoroso que não verte suas velas mais alto do que o vento poderia guiá-lo.
Mas, mesmo que Roman Polanski instigue uma sexualidade reprimida nas entrelinhas, o tema dominante da narrativa é o duelo de juventude e experiência, pobreza e riqueza, verão e inverno, representando na constatação mais importante feita por Krystyna ao rapaz: “você é igual a ele, apenas metade da idade e o dobro da estupidez” e “ele foi como você e você quer ser como ele“. Nesse sentido, disputas acirradas de testosterona, aparentemente banais, como quem infla primeiro o colchão de ar ou o arremesso de faca no alvo, abrem margem ao inevitável enfrentamento de sujeitos similares separados unicamente pelo tempo: um, rancoroso ao constatar a juventude esvaziando por seus dedos; o outro, aspirando a ter aquela vida para si. Talvez Polanski expresse ainda o conflitos de duas polônias: a vitimada pela segunda guerra mundial e a do pós-guerra depois da imposição comunista da União Soviética.
Divagações robustas de lado, Polanski recorre ao voyeurismo para intensificar a escalada do suspense e instabilidade e a câmera detrás dos personagens, quase sobre seus ombros, é muito utilizada, sobretudo para o rapaz, que representa ultimamente o flerte da classe média (e inveja, porque não) pela intangível riqueza dos mais abastados. Inteligentemente, porém, não é o rapaz que deseja usurpar a propriedade de Andrzek, ao menos material, mas este urge apropriar-se da jovialidade daquele, tomando-lhe sua faca e símbolo de uma agilidade que não mais possui. Assim, naturalmente a narrativa abandona o voyeurismo inicial e investe nos planos fechadíssimos que encontraram personagens atemorizados, surpresos e/ou maquiavelicamente sorrindo.
Por sua vez, a direção de fotografia de Jerzy Lipman é de um virtuosismo técnico exemplar: dominando o espaço da nau, a câmera parece não se perturbar com a limitação espacial nos travellings fluidamente aproximando-se e se afastando do barco. Ademais, o retrato deste pairando no desértico horizonte sob uma fotografia opressiva em preto & branco resume a crescente e claustrofóbica angústia do rapaz enclausurado em uma prisão nas águas, diante de sua incapacidade de nadar.
Pouca importa, portanto, a destreza no manuseio da faca e a direção tomada no jogo perpetrado pelos homens. Encarando o espelho do tempo, a única certeza a se ter é de que sempre haverá um contraste ou um borrão na imagem refletida.
Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, Longa Jornada Noite Adentro.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
3 comentários em “A Faca na Água”
Polanski sempre foi e sempre será gênio….esse eu não conhecia.
Ainda não assisti este, fiquei muito curioso depois de ler sua resenha, gosto muito do Polanski e da forma com que ele trabalha os conflitos externos de cada um de seus personagens… Publiquei a poucos dias a crítica de "O Escritor Fantasma", o penúltimo filme dele, dê uma olhada lá depois: http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2012/06/o-escritor-fantasma.html
Forte abraço!!!
Excelente texto, como de costume. Faca na Água é um dos que mais tenho vontade de ver. Aliás, não sei como nunca assisti o filme, já que vi praticamente a filmografia toda do Polanski. Um verdadeiro gênio – e subestimado por muitos. Adoro suspenses claustrofóbicos!