Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

II Festival Lume de Cinema – Dia 1

Apesar de, neste ano, o Festival Lume de Cinema que ocorre em São Luís/MA, ocorrer justamente em um período atribulado e repleto de compromissos, não poderia deixar de acompanhá-lo, nem que timidamente. Parabéns ao amigo e organizado Frederico Machado e a todos os envolvidos pelo bem sucedido empreendimento e vamos recapitular os filmes que vi neste sábado (dia 16).
1) O Carteiro, Brasil, 2012. Direção: Reginaldo Faria. Roteiro: Reginaldo Faria. Elenco: Cande Faria, Ana Carolina Machado, Dany Stenzel, Felipe de Paula, José Vitor Castiel, Ingra Liberato, Fernanda Carvalho Leite, André José Adler, Anselmo Vasconcelos, Marcelo Faria e Reginaldo Faria. Duração: 102 minutos.


As cartas têm poder“, um personagem afirma certo momento de O Carteiro, o retorno de Reginaldo Faria à direção depois de um hiato de quase 30 anos. Bem, ao menos há algumas décadas no pequenino Vale Vêneto, elas tinham poder. Neste contexto, antes da internet e da acessibilidade das ligações interurbanas, o correio exultava a ingênua ansiedade no coração de jovens apaixonados, brincava com as expectativas em frases e poesias que significavam um mundo e fecundavam amores ou sedimentavam seu término. Nostalgia representada de forma competente pela fotografia contemplativa de tons amenos, na direção de arte e seus relógios-cuco e máquinas de escrever ou na mocidade e romantismo de seus personagens.
Víctor (Cande Faria, o caçula de Reginaldo) é um destes curiosos habitantes do Vale Vêneto. Um carteiro que parece desconhecer o crime de violação de correspondência e que, numa carta, parece sintetizar muito bem a rotina dos outros moradores, como a viúva Genoveva (Leite), a dona da pensão, o casal de amores de colégio Doroti (Stenzel) e Seu Joca (Castiel) ou o romance intrépido e perigoso do delegado Daniel (Marcelo Faria) e Natalina (Liberato). Mas, dentre todos esses, ninguém desperta tanta afeição em Víctor do que Marli (Machado), recém chegada e que vive um romance à distância com o carioca Daniel. Brincando de cupido curioso e fofoqueiro, usurpando e deturpando as correspondências alheias e jogando com os sentimentos de todos – junto com o amigo e comparsa Jonas (De Paula) -, Víctor acaba se metendo em uma enrascada bem maior do que se dispunha a lidar.
Bem-intencionado e gostoso de assistir, a comédia romântica se desenvolve de forma esquemática e fácil demais, evitando soluções contundentes para preservar o clima pacato na serra gaúcha. Tudo é bastante óbvio, como a trilha sonora militar que antecede a presença do delegado ou a ideia de redimir Víctor a partir de um ato de generosidade, mas há um quê gostoso na narrativa. Talvez seja a cara-de-pau das mentiras de Víctor ou seu sorrisinho maquiavélico frisado pela boa atuação de Cande Faria; talvez o descompromisso de Reginaldo Faria, por quem sempre nutri um carinho grande e admiração. 
Em suma, é um filme fácil de assistir, mas que evapora da memória segundos depois de seu fim. 
2) Clip (Klip), Sérvia, 2012. Direção: Maja Milos. Roteiro: Maja Milos. Elenco: Isidora Simijonovic, Vukasin Jasnic, Dimitrije Arandjelovic, Nikola Dragutinovic, Vladimir Gvojic e Sonja Janicic. Duração: 100 minutos.
A primeira cena de Clip é determinante para entendermos o que a cineasta estreante Maja Milos tem em mente: de costas às paredes, encarando uma câmera de celular, a adolescente Jasna (Simijonovic) insinua-se provocando o cinegrafista mesmo que este tenha o único interesse de vê-la se humilhando implorando por sexo. Adotando uma crueza extrema no retrato da precoce sexualidade dos jovens daquele país marcado por guerras que ainda não esqueceu da tragédia de Kosovo, Maja Milos tece um retrato sujo e repugnante de uma jovem egoísta e narcisista que ignora a doença terminal do pai (ele sofre de câncer), os afazeres domésticos e os estudos, dedicando-se quase que exclusivamente à sexo, drogas e festas.

Até aí, não tenho que me queixar do retrato contemporâneo de jovens que têm acesso cedo demais a coisas que apenas deveriam conhecer (e se conhecessem) na vida adulta. O retrato da vulgarização e banalização é, portanto, autenticamente moldado para chocar o espectador. Não há nada de bonito na jornada de Jasna e o seu “romance” com Djordje, ela não precisa de um arco dramático definido afora ser repulsiva. Isto não esta em discussão neste estudo de personagem que se mantém inabalavelmente coerente na sua abordagem e nos leva a sentir pena do choro copioso de Jasna ao invés de se emocionar pelo que ela expurgava do seu sistema.

Porém, há necessidade de explicitamente escancarar a vida sexual de Jasna visto que a compreendíamos e a leitura nas entrelinhas era suficiente? Assim, sutileza é um conceito inédito na produção que escancara a vida sexual de Jasna de forma repetitiva e explícita (a cada 10 minutos, pelo menos): sequências de sexo oral no banheiro do colégio e na imundice de uma festa, planos-detalhe de ejaculações e uma depilação da virilha e o “feijão com arroz” de posições de submissão e exposições em frente à câmera do celular. Ao invés de chocar, como Shame fizera, este filme apenas cansa pela redundância de suas ações e aspereza de uma jovem que eu não desejaria encontrar jamais na minha vida.

O que coloca em cheque a abordagem ultra-explícita de Maja Milos pois, a meu ver, o tiro saiu pela culatra.  Ao invés de criar um romance hardcore (e havia momentos em que sentia isto, às avessas, como no dar de dedos dos dois ou na apresentação desajeitada de Djordje à família de Jasna), a cineasta apenas conseguiu expor das piores formas possíveis seus atores.

Eu não acho isso um elogio saudável!

3) Crulic – Trilha para o Além (Crulic – drumul spre dincolo), Romênia/Polônia, 2011. Direção: Anca Damian. Roteiro: Anca Damian. Elenco: Vlad Ivanov e Jamie Sives. Duração: 73 minutos.


Claudiu Crulic é um jovem romeno nascido em uma grande e pobre família, o que frisa com bastante senso de humor logo nos minutos iniciais. Tendo ido morar na Polônia, ele é acusado, injustamente, de ter furtado a carteira de um juiz, havendo provas irrefutáveis de que sequer estava naquele país durante o incidente (ele viajara à Itália com sua esposa). Consternado com o sistema judicial que o enviou à prisão e a inércia de seu país em resolver suas situação, ele decide empreender uma greve de fome, na ânsia (ingênua) de sensibilizar aquelas ao seu redor, mas que resultaria, unicamente, na trágica perda de uma vida humana. Baseado em uma história real, o filme de Anca Damian não esconde desde cedo o destino de seu protagonista na ligação que revela sua morte e dá início à narração das memórias de Crulic daquele momento.
Apresentando em animação (como o espetacular: Valsa com Bashir), o documentário mescla diversas técnicas de animação, como o stop-motion, colagens, desenhos a mão, dentre outras, para criar um retrato poético e trágico do seu personagem. Dividido em dois momentos, conhecemos com bom humor e saudosa melancolia, a infância e adolescência do jovem, nos rostos recortados de fotos que se sobrepõem à ação e contam a trajetória de seus dois cachorros ou a história de seu tio, sua queda da janela, predileção por licor de cereja, paixão por chapéus e inevitável morte representada no jogo da forca. Crulic também é reflexivo ao sugerir a última foto ou viagem, e a ignorância de desconhecer as curvas aprontadas pelo destino. 
E, inevitavelmente, o destino chega e o envia à prisão retratada através de abordagem expressionista: das sombras estressantes, formas assimétricas e linhas que se estendem ao infinito, Anca Damian pretender usar a animação para discutir o terror vivido no sistema prisional e na decisão da greve de fome de Crulic. Assim ocorre no plano plongé que viaja por sobre os cárceres individuais até revelar o cadavérico protagonista, e que se esvai, ao menos uma única vez, pelas barras de ferro para revelar discretamente as festas natalinas. Usando de forma inusitada recursos de animação, o cineasta mostra-se pertinente ao revelar um psiquiatra descansando, literalmente, a cabeça de Crulic até atingir o seu cérebro e a pertinência dos rostos sem face.
Ultimamente, a poesia culmina na aceitação da morte, na belíssima fuga do lençol mortuário ao vento e rumo à liberdade. Algo que Crulic não conseguira em vida, por ações espúrias de inúmeros atores que poderiam ter agido diferentemente, e cuja morte (suicídio!) enfim libertou de todo o sofrimento. 

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