Entretanto, quem assistiu a Moloch (1999) certamente deve ter saído dos cinemas perplexo. Eis um cineasta que tomou um dos maiores monstros da história da humanidade e o banalizou ao enquadrá-lo defecando numa caminhada na montanha ou o mostrou reproduzindo atitudes vexatórias na frente da cúpula nazista ausentada por um final de semana de assuntos políticos. Um maestro ensandecido à frente de uma guerra de brincadeira sem sequer desconfiar do que viria a ser o campo de concentração de Auschwitz. Nada havia de poderoso no Hitler de Sokurov; pelo contrário, submisso à esposa Eva Braun e inferiorizado diante dos outros, ele era hipocondríaco, avesso a odores e fluidos corporais, histérico e infantil. Assim, quem buscava o orador que movimentou alemães a cometer atrocidades e o obstinado líder esbarrou na figura caricata e satírica apresentada por Sokurov. O resultado não foi menos do que controverso: o poder não era a materialização da divindade ariana, e sim a porta através da qual a loucura distorcia Adolf Hitler. Alguém não menos banal do que o mais ordinário dos homens, um irônico paradoxo.
Passaram-se dois anos até Sokurov lançar Taurus (2001), acompanhando os últimos instantes da vida de Lenin. Sofrendo as sequelas de derrames que paralisaram o seu lado direito, o “touro”, diferentemente do Hitler de Moloch, jamais abandona a autoridade emanada do enebriante aroma de poder. E, se apenas pequena fração de sua filosofia social marxista e ideologia política é explícita no ensaio, ao menos Sokurov convida a testemunhar o confinamento forçado de um líder decadente, a imagem de que nem o poder venceria as engrenagens do tempo. A partir de uma visão humanizada de Lenin (a doença tem este milagroso poder), Sokurov revela a perda da individualidade e privacidade na iminência do fim, mas permite um instante de isolamento na recordação dos dizeres de sua mãe de que a chuva e o trovão são sinais angelicais, o que provoca o brotar de um tímido sorriso no rosto daquele duro homem. Apenas o tempo é permanente, o resto é transitório, uma farsa, portanto.
Não existe, no entanto, nada mais farsesco do que o poder emanado da suposta “divindade” de um ser de carne e osso. Em O Sol (2005), Sokurov desmistifica e humaniza o imperador japonês Hirohito, ao mesmo tempo em que promove um autêntico rebaixamento deste à condição humana propriamente dita. Humilde decisão de um líder ao encarar a humilhante derrota para mortais e o bombardeio de Hiroshima culminando na destruição do orgulho e amor-próprio do povo japonês. Um bebê nas mãos de serviçais (adjetivo utilizado por ele próprio) nas tarefas oportunas, como recordar a agenda diária, e banais, como vestir um casaco, Hirohito é um homem de tiques e um gestual confuso (normalmente, ele move os lábios como se estivesse a ensaiar o balbuciar de algo). Alguém nascido tão introjectado de poder que, portanto, é o mais trágico das figuras retratadas. Descer das nuvens, assumir a humanidade e aceitar o acordo do General Douglas MacArthur são só tarefas mundanas disfarçadas do divino. Máscara ao chão que revela não mais um deus ou o ungido do povo, e sim, um homem.
Mas, apesar daqueles personagens históricos, não existiu homem melhor do que o fictício Fausto de Goethe para refletir a respeito do poder e a corruptibilidade inerente a ele. Menos objetivo do que a versão expressionista de F. W. Murnau de 1926, o Fausto de Sokurov desata as amarras literárias, abraça a subjetividade e a coexistência de múltiplas interpretações do mito. Ambientado num mundo de pesadelos, distorcido e incômodo, o doutor Fausto é refém da própria genialidade, dom divino que o diferiria de seus pares e o põe na aflitiva busca da existência da alma (e de um punhado de comida para preencher o vazio da miserabilidade em que vive). Certo dia, Fausto conhece o grotesco Maurício, o Mefisto ou demônio, não menos do que penhor, usurário e agiota que, eventualmente, lhe oferece poder em troca de sua alma. Poder que Fausto gozaria para suprir desejos carnais e espirituais, porém jamais o deteria nas suas mãos. A negação do que seria, de fato, o poder concreto.
É Fausto quem, no final das contas, ilumina Adolf Hitler, Lenin e Hirohito. Seduzidos por um poder que eventualmente escorreria por entre seus dedos (da morte eles não escapariam), aqueles homens empreenderam uma cruzada onde transformavam poder no luxo de assassinar milhares de homens, de transladar riquezas da mãos burguesas para o proletário faminto e empobrecido e de restaurar e, talvez, vingar o espírito honrado dos súditos compatriotas. Ultimamente, apesar de terem agitado o cenário internacional como Fausto fizera com os que atravessaram o seu caminho, a história acabara rindo da supremacia ariana nazista, da batalha comunista soviética que sucumbe diariamente à imposição capitalista e de uma alegada divindade, bem como fizera Goethe ao dissertar da intransigência de seu protagonista em dominar o conhecimento.
O que levo da tetralogia é o esforço de Sokurov em resgatar homens subvertidos em deuses ao devolvê-los a humanidade perdida nos mitos. Seu trabalho destronou reis, extirpou vestes e arrancou cetros e coroas e, no minimalismo íntimo narrativo, provou que o poder é uma farsa incapaz de disfarçar a verdadeira natureza dos marionetistas da história. Porém, não seriam eles marionetes nas mãos do poder?
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
4 comentários em “A Tetralogia do Poder”
Parabéns pelo texto Márcio. Depois de lê-lo me interessei pelos outros filmes, vi Fausto recentemente e gostei bastante. Pretendo ver os outros 3 em breve. Abraços. =)
Desculpe-me pelo sumiço. Estava enrolado com o lançamento de dois livros.Mas já estou de volta! Considero MOLOCH o melho filme de Sukorov que vi.
O Falcão Maltês
Fico feliz. Espero que aproveite 🙂
Acho Moloch o mais inusitado, mas o mais redondo é O Sol.