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O Grande Motim

Mutiny on the Bounty. Estados Unidos, 1962. Direção: Lewis Milestone. Roteiro: Charles Lederer baseado no livro de Charles Nordoff e James Norman Hall. Elenco: Marlon Brando, Trevor Howard, Richard Harris, Hugh Griffith, Richard Haydn, Tarita, Percy Herbert, Duncan Lamont, Gordon Jackson. Duração: 178 minutos.

Em 1789, o HMS Bounty fora vítima de um dos motins mais célebres da história da marinha. Livros foram escritos sobre os eventos que antecederam a insurreição do imediato Fletcher Christian outros tripulantes contra a disciplina opressiva e cruel do Capitão William Bligh e diversas adaptações cinematográficas foram produzidas. A mais premiada e famosa sendo a de 1935 estrelada por Clark Gable e outra, mais recente e enxuta de 1984, contava com um jovem Mel Gibson e Anthony Hopkins. Também há este enorme elefante branco de quase 3 horas de duração, protagonizado por um Marlon Brando na iminência dos notórios ataques de glutonice e estrelismo, e indicado a 7 Oscars. Mas, não se deixe enganar, pois assim como a Academia se equivoca de maneira colossal nos dias de hoje, antigamente também não era muito diferente.

No roteiro escrito por Chales Lederer, mas com a colaboração de outras dez mãos, o HMS Bounty parte na antevéspera do Natal do porto de Portsmouth com a missão de coletar espécimes da exótica a fruta-pão do Tahiti e levá-la à colônia inglesa na Jamaica de forma a reduzir os custos de alimentação dos escravos. Bastam, porém, o incidente envolvendo o desparecimento de dois queijos para instaurar um relacionamento aflitivo e violento entre o intransigente Capitão Bligh (Howard), que outrora navegara com o lendário capitão Cook, e a tripulação do navio. Adepto a punições rígidas e desproporcionais aos delitos praticados – contra uma ofensa ao capitão, o marujo Mills (Harris) recebe 24 chicotadas -, a semente da discórdia e do medo é plantada junto ao imediato Fletcher (Brando), que embora não discorde da importância da disciplina e da autoridade, reconhece a sua excessividade e pura maldade. Inevitavelmente, os homens na embarcação chegarão a um insustentável momento em que o motim do título ocorrera.

Este é um dos muitos defeitos narrativos: enquanto acompanhamos repetitivamente a sucessão de agressões praticadas em nome do respeito ao código naval, o tal grande motim do título resume-se a ínfimos minutos após cerca de 2 horas de narrativa quando o espectador boiava nas águas do tédio, sobretudo na chegada ao Tahiti. Obrigados a acompanhar o embaraçoso interstício amoroso entre Fletcher e Maimiti (Tarita), filha do líder Hitihiti, e as desventuras dos marujos sedentos por um toque feminino (coincidentemente, as nativas acham o sexo algo natural), o roteiro esquece que a missão deveria vir em primeiro lugar, sendo a tripulação secundária aos interesses da Coroa. Faltam dramas reais no lugar das conversas de corredor e alfinetadas entre Bligh e Fletcher; este indaga até onde vai a obediência e qual seria a conduta do capitão nas infrações mais severas, aquele veste o mantra de esforço e trabalho, ignorando que a desumanidade praticada nada tem de cavalheirismo (“crueldade com propósito não é crueldade; é eficiência“). Sentados sob as opiniões divergentes, o relacionamento dos dois desenvolve-se em um cabo de guerra incessantemente martelado na cabeça do público.

Também é questionável a composição adotada por Marlon Brando, um dos personagens mais inconstantes da filmografia deste excepcional ator (para muitos, o melhor). Seu arco dramático até é competente e o ator torna manifesto três etapas na personalidade de Fletcher: o jeito bonachão, exagerado e extravagante de um homem que aparentemente jamais deveria pertencer à marinha; o dividido entre a lealdade à hierarquia e ao bom senso e a segurança da tripulação; e enfim, alguém atormentado e consumido pela traição praticada. Seu Fletcher, porém, desconhece terminantemente o significado da palavra sutil. Assumindo uma postura afetada até dizer chega, no cabelo lustroso, capa vermelha ou mesmo na cena em que surge de pijamas (o que não o humaniza, mas sim, torna-o uma caricatura), ou imergindo ainda nas sombras do remorso como se ensaiasse suas cenas no vindouro Apocalypse Now, no resto do tempo em que surge comedido, Brando é eclipsado pela articulação fria, pensada e intensa de Trevor Howard.

Tecnicamente, porém, O Grande Motim é um espetáculo irrepreensível. Depois de terem construído não apenas uma réplica da nau, mas duas, a imagem dela pairando na vasta imensidão das águas é arrepiante e a fotografia do mestre Robert Surtees ressalta a unicidade de cada horizonte, do pôr-do-sol ao raiar do dia, e a sequência em que a coloração das águas parece ser vermelha graças é de uma felicidade ímpar. A escolha das locações também é acertadíssima e o cenário exótico misturado à centena de nativos figurantes confere, obviamente, uma verossimilhança maior à narrativa. Finalmente, a direção de arte é de primeira qualidade conferindo uma imponência magistral ao HMS Bounty, bem como ressaltando que a embarcação é suficientemente capaz de resistir às intempéries marítimas, como uma violenta borrasca (acentuada pelos ótimos efeitos sonoros, no sibilar dos ventos e intensa agressão das ondas ao casco do navio).

Entretanto, O Grande Motim jamais seduz além dos olhos e se assemelha a uma sereia: externamente bela, mas apodrecida e oca por dentro. Nada mais justo, portanto, que o destino desta megalômana  e arrastada superprodução seja o esquecimento no fundo do mar.

Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, O Processo de Joana D’Arc.

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