No roteiro escrito por Chales Lederer, mas com a colaboração de outras dez mãos, o HMS Bounty parte na antevéspera do Natal do porto de Portsmouth com a missão de coletar espécimes da exótica a fruta-pão do Tahiti e levá-la à colônia inglesa na Jamaica de forma a reduzir os custos de alimentação dos escravos. Bastam, porém, o incidente envolvendo o desparecimento de dois queijos para instaurar um relacionamento aflitivo e violento entre o intransigente Capitão Bligh (Howard), que outrora navegara com o lendário capitão Cook, e a tripulação do navio. Adepto a punições rígidas e desproporcionais aos delitos praticados – contra uma ofensa ao capitão, o marujo Mills (Harris) recebe 24 chicotadas -, a semente da discórdia e do medo é plantada junto ao imediato Fletcher (Brando), que embora não discorde da importância da disciplina e da autoridade, reconhece a sua excessividade e pura maldade. Inevitavelmente, os homens na embarcação chegarão a um insustentável momento em que o motim do título ocorrera.
Também é questionável a composição adotada por Marlon Brando, um dos personagens mais inconstantes da filmografia deste excepcional ator (para muitos, o melhor). Seu arco dramático até é competente e o ator torna manifesto três etapas na personalidade de Fletcher: o jeito bonachão, exagerado e extravagante de um homem que aparentemente jamais deveria pertencer à marinha; o dividido entre a lealdade à hierarquia e ao bom senso e a segurança da tripulação; e enfim, alguém atormentado e consumido pela traição praticada. Seu Fletcher, porém, desconhece terminantemente o significado da palavra sutil. Assumindo uma postura afetada até dizer chega, no cabelo lustroso, capa vermelha ou mesmo na cena em que surge de pijamas (o que não o humaniza, mas sim, torna-o uma caricatura), ou imergindo ainda nas sombras do remorso como se ensaiasse suas cenas no vindouro Apocalypse Now, no resto do tempo em que surge comedido, Brando é eclipsado pela articulação fria, pensada e intensa de Trevor Howard.
Tecnicamente, porém, O Grande Motim é um espetáculo irrepreensível. Depois de terem construído não apenas uma réplica da nau, mas duas, a imagem dela pairando na vasta imensidão das águas é arrepiante e a fotografia do mestre Robert Surtees ressalta a unicidade de cada horizonte, do pôr-do-sol ao raiar do dia, e a sequência em que a coloração das águas parece ser vermelha graças é de uma felicidade ímpar. A escolha das locações também é acertadíssima e o cenário exótico misturado à centena de nativos figurantes confere, obviamente, uma verossimilhança maior à narrativa. Finalmente, a direção de arte é de primeira qualidade conferindo uma imponência magistral ao HMS Bounty, bem como ressaltando que a embarcação é suficientemente capaz de resistir às intempéries marítimas, como uma violenta borrasca (acentuada pelos ótimos efeitos sonoros, no sibilar dos ventos e intensa agressão das ondas ao casco do navio).
Entretanto, O Grande Motim jamais seduz além dos olhos e se assemelha a uma sereia: externamente bela, mas apodrecida e oca por dentro. Nada mais justo, portanto, que o destino desta megalômana e arrastada superprodução seja o esquecimento no fundo do mar.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.