Essa inspiradora trajetória motivou Thomas E. Gaddis a escrever um livro sobre o famoso detento e seu encarceramento de 50 anos passados em três presídios, dos quais dois são retratados no roteiro de Guy Trosper. Chegando a Leavenworth em 1912, já com status de irascível, insubmisso e problemático, Stroud (Lancaster) é objeto da atenção de Harvey Shoemaker (Malder) que deseja torná-lo modelo de uma retrógrada conceituação de ressocialização. Seus esforços não poderiam ser mais em vão quando Stroud espanca outro detento após um comentário impróprio e mata um guarda cujo relatório removeria alguns de seus privilégios. Salvo da pena de morte graças a campanha humanitária protagonizada por sua mãe (Ritter) junto ao congresso, Stroud acaba enviado ao isolamento onde, numa noite chuvosa, descobre um pardal abandonado no pátio do presídio e o acolhe na cela. Assim, sob à vista grossa do bondoso guarda Ransom (Brand), ultimamente o protagonista instaura um período de paz no solitário confinamento e os demais presos passam a receber aves pelos correios para lhes fazer companhia.
Isto, porém, não viria a cair no seu colo de mãos beijadas e a rixa pessoal com Harvey Shoemaker viria a impor obstáculos no âmbito governamental, superados pelas campanhas da mãe e o envolvimento de Stella (Field), uma viúva que se apaixona por Stroud. Imerso nos estudos e desenvolvendo lentamente habilidades sociais – afora Ransom, o detento vizinho Feto Gomez (Savalas) também se torna seu amigo -, chega-se ao momento em que centenas de pássaros dividem a cela com Stroud e ele se dedica a buscar a cura da febre séptica que assola o pequeno microuniverso aviário de Leavenworth. Até que uma série de eventos desafortunados o conduz a Alcatraz, como os ciúmes da mãe e a mesquinhez de Harvey incapaz de assumir seus erros.
Tendo em mãos uma história tão poderosa que tem a autoridade de se contar sozinha, a direção de John Frankenheimer é discreta e aposta na linguagem visual competente e na óbvia analogia onde gaiolas são usadas para discutir o encarceramento. Esta decisão revela-se correta visto que a sensibilidade impressa na direção escancara a fundamental mazela do sistema prisional: a inabilidade de aceitar a individualidade dos detentos, vendo-os como máquinas destinadas a seguir uma rotina aleijante que inevitavelmente os conduziria novamente detrás das grades. Tome Robert Stroud por exemplo: de educação humilde, mas extremamente dedicado e inteligente, este homem que modificou a ciência aviária poderia fazer muito mais por vidas humanas (e um cientista oportunamente propõe este questionamento). As incessantes sombras das grades no seu rosto, no entanto, não deixam mentir a respeito do seu destino e a liberdade dada ao pardal, certo momento, jamais lhe seria concedida.
Sim, é verdade que a versão de John Frankenheimer apresenta presídios aparentemente datados que não se encontram nos dias atuais e sequer comparam-se às superlotações encontradas no nosso país: os presos são cordiais, limpos e a segurança é bem menos rígida (certo momento, Ransom abre a porta da prisão ou cede uma garrafa a Stroud despreocupadamente). O que não rechaça a visão coerente sobre reabilitação e a evolução gradual desse homem que John Locke não hesitaria de usar de exemplo para a sua tese de estado natural e sociedade. Da ingratidão, raiva incontinenti e misantropia, e não à toa ele habitara no esquecido Alasca, Stroud torna-se um homem doce, educado e gentil, e o reencontro com Harvey mal desperta aflição no espectador, pois já temos certeza da índole recuperada.
Essa evolução é muito bem registrada pela soberba atuação de Burt Lancaster. Minimalista e discreto até nos intensos e violentos primeiros anos, a composição do ator progressivamente converge no homem de caminhar lento e curvado e voz serena (a maquiagem é eficiente no retrato do envelhecimento), mas de postura inabalável e convicto de seus ideais. Alguém que acreditava piamente na tradução literal do latim para reabilitação, ou seja, reinvestir alguém de dignidade, o que passava naturalmente por aceitar as individualidades de cada homem.
Uma ironia, portanto, que se antes Robert Stroud fora carinhosamente conhecido por Bob, ele viria a se tornar apenas o preso número 594 em Alcatraz. Felizmente, a história evitou cometer o mesmo erro de seus encarceradores.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “O Homem de Alcatraz”
Clássico que ainda não consegui assistir. Vou tentar ver nas férias, semana que vem.
Clássico mesmo.