Uma coisa que aprendi durante todos estes anos é de jamais subestimar o trabalho de um gênio. Mesmo se revelando inconstante nos últimos anos e municiando os detratores com obras bastante inferiores aos seus melhores trabalhos, Woody Allen sempre deu provas irrefutáveis de sua genialidade e, ao longo de mais de 40 filmes, sedimentou um estilo de produção acelerado com a invejável média de um novo filme lançado anualmente. Excursionando no velho continente, o cineasta enfim aterrissa na Itália, palco deste Para Roma, com Amor, um de seus trabalhos mais livres e descompromissados e que ao lado de Memórias e Desconstruindo Harry, apresenta uma esclarecedora perspectiva sobre a sua carreira, além do retrato caloroso da espontaneidade e paixão tipicamente italianas.
Baseando-se livremente no Decamerão de Giovanni Boccaccio (inclusive, havia a referência explícita em um dos títulos anteriores do projeto), o roteiro elabora uma antologia de quatro histórias independentes, porém misteriosamente entrecortadas em torno da falibilidade humana e a atraente e sedutora fama. Numa deles, a nova iorquina Hayley (Pill) apaixona-se por Michelangelo (Parenti) e convida os seus pais burgueses (Allen e Davis) a conhecê-lo e a agitar a vida de uma pacata família esquerdista. Em outra história, Antonio (Tiberi) e Milly (Mastronardi) são ingênuos provincianos recém-casados que chegam em Roma com a promessa de enriquecer trabalhando com parentes abastados. Por sua vez, John (Baldwin) é um arquiteto bem-sucedido revisitando, literalmente, a sua juventude na figura do idealista Jack (Eisenberg). E finalmente, Leopoldo (Benigni) é um confiável, agradável e previsível italiano transformado em celebridade instantânea.
Esses segmentos envolvem, sobretudo, o culto à celebridade e o fascínio provocado pela fama no homem médio (e consequentemente, pelo poder). Não haveria autor mais apropriado para propor esta discussão satírica senão Woody. Tendo ojeriza às premiações e ao reducionismo da arte nas revistas de “fofocas de personalidades”, ele alfineta a imprensa nas perguntas frívolas lançadas ao ordinário Leopoldo (“o que você comeu no café da manhã?“, “como dormiu hoje?” ou “você usa cueca slipper ou boxer?“). Ele também não esquece sermos pessoas escapistas e bitoladas por uma suposta atração ao meio artístico: não a toa, o célebre ator local que motiva o adultério de uma personagem seja gorducho, grosseiro e careca, nada sedutor, ou a apaixonante atriz, insistentemente admirada por uma amiga, revele-se pequenina, insossa e insegura. Mais do que isto, ciente de que aceitaríamos os convites mais esdrúxulos por reconhecimento midiático e popular, ele introduz um personagem que não hesita aparecer nu no chuveiro cantando ópera para centenas de pessoas.
Inebriada de charme, apuro e melancolia, a narrativa contém os elementos característicos da filmografia de seu autor e a sua persona cinematográfica está presente na voz trôpega de Jack, na insegurança de Antonio e na semelhança física com Roberto Benigni. Recheado de diálogos refinados e humor característico do cineasta há uma gag divertida acerca de turbulência e ateísmo e frases ímpares como àquela em que Jerry afirma que a sua “mente não se adapta ao modelo de ego, superego e id“. O autor ainda abre um clarão na reveladora discussão sobre sua vida e carreira, equiparando a aposentadoria à morte e reconhecendo ter sido alguém além do seu tempo, no entanto, sem jamais soar pretensioso ou arrogante.
Mas, mesmo sendo agradável e simpático, Para Roma, com Amor tem a sua parcela de equívocos no formato de múltiplas narrativas que, montadas de forma preguiçosa e desinteressante no pano de fundo romano, acabam denunciando uma fragilidade na lógica temporal: as narrativas do arquiteto e do casal interiorano transcorrem aparentemente ao longo de um dia, já as outras exigem muito mais tempo para maturar e se desenvolver. E, mesmo que não fosse seu objetivo costurar as histórias entre si, jamais pedi tanto por um esbarrão no meio da rua que aproximasse aqueles personagens uns dos outros.
Usando o subtema arquitetônico como desculpa para explorar os pontos turísticos de Roma, Woody Allen está cheio de boas ideias, não satisfatoriamente realizadas como ocorrera ano passado em Meia-Noite em Paris. Se ele não pormenoriza e mastiga a história de John e Jack, deixando a interpretação à sensibilidade dos espectadores (o tom mágico permanece nas entrelinhas), as curiosas ideias do tenor no chuveiro ou do homem pacato surpreendido pela fama imediata seriam mais engraçadas se não fossem desenvolvidas de forma desastrada e afobada. Aliás, para quem gosta de debater, há argumentos favoráveis e contrários ao método de produção do cineasta: o frescor da inspiração poderia se dissipar nas reescritas e releituras da obra, mas seriam úteis para aparar arestas e dirimir o atropelo narrativo ocasional.
Com um elenco homogeneamente bom, de onde não consigo pinçar um destaque isolado, a fotografia quente e convidativa de Darius Khondji e a trilha sonora descontraída, Woody Allen se propôs a desvendar as nuances da Itália em histórias cotidianas numa barulhenta, bagunçada e espontânea metrópole. Segundo ele, italianos cantam ópera no banho, não sabem fornecer orientações a turistas e resolvem seus problemas regados a vinho e saboreando uma massa. Tudo bem ao estilo do autor, sofisticado, prazeroso e, desta vez, bem italiano.
Até 2013, Woody!
10 comentários em “Para Roma, com Amor”
Não ERA grande fã de Woody Allen. Depois de Meia Noite em Paris..revi minha meu conceito e meus pré-conceitos.
Ótima resenha Márcio! Concordo realmente com os defeitos apontados, e principalmente, não achei que a cidade de Roma "aconteceu" no filme, como Barcelona ou Paris fizeram, mas não querendo compara-lo, como as cidades sempre tornam-se personagens do filme em algumas obras primas. Achei inteligente e bem engraçada, mas nada demais. Grande abraço
Ainda bem que o cinema perdoa essas coisas. Se tranque em casa e veja toda a sua filmografia… JÁ! 🙂
Interessante apontamento que deixei passar. Roma parece apenas cenário no contexto geral, "atua" pouco. Bem frisado.
Sou fã, assim como você, do Woody Allen. O trailer de Para Roma, com Amor, confesso, não me empolgou. Claro, o mestre na direção (e atuando), somados um elenco ótimo, já é motivo suficiente para impulsionar minha ida ao cinema. Dito isso, hei de admitir que sua crítica me motivou mais a ver o filme.
Uma coisa: lembro-me da Isabela Boscov dizendo que o Jesse Eisenberg era o novo Woody Allen, na época de Zumbilândia, pelos seus tiques e neuroses. E, realmente, lembra muito. Já tinha passado da hora de entrar num filme do Woody, né?! Espero que seu talento seja aproveitado aqui, adoro ele!
Sobre a declaração do Woody em relação à Itália, meu primo me contou que lá são péssimos pra dar informações mesmo. Além disso, são malandros pra caramba, passam a perna em tudo contue turista. Com as palavras dele: é como o Rio de Janeiro, só que o turista é você.
Nenhum trailer me empolga mais 🙂
Mas, como um filme do predileto não mexeria com meu brio?
Em abril comecei a saga da coleção Woody Allen e simplesmente me apaixonei. Passou de "ui, um cara estranho que casou com a filha" para "putaquepariu, meu diretor preferido pra sempre". Ele é sensacional. Ainda falta uma dezena de filmes pra completar a filmografia e eu já me apaixonei (sigo a cronologia e acabei de ver Desconstruindo Harry – que de tão incrível já está entre os top 3).
Mal conseguia esperar e assisti Para Roma com Amor na pré-estreia – claro que o fato de estar vendo meu primeiro W.A. no cinema ajudou a tornar tudo muito mágico – e só posso dizer que Woody Allen sem estar no seu melhor filme é infinitamente melhor do que muita gente premiada por aí. Mesmo não sendo impecável o filme me agradou muito e deixou aquele gosto de quero mais.
Enquanto 2013 não vem, o que me resta é partir para o próximo e colocar logo Celebridades no DVD. Ok, a crítica não é boa…mas o amor é cego e neurótico então vai ficar tudo bem.
Fico feliz por você. Woody Allen é um dos cineastas mais obrigatórios do cinema. Já assisti a todos seus filmes e inclusive tenho uma postagem dedicada a ele, depois procure, Grandes Diretores: Woody Allen 🙂
Achei sua crítica melhor que o filme, Márcio, mas tudo bem. Achei o filme superficial e rasteiro no que propõe.
Obrigado amigo 🙂