No entanto, diferente de Borat e Brüno, mockumentaries nos quais o humorista improvisava situações e encurralava cidadãos até os levar a escancarar inconscientemente o falso moralismo da sociedade que desejava criticar, o formato de O Ditador é limitado justamente pela popularidade do ator, que não pode mais fazer humor nas ruas sem ser reconhecimento imediatamente, e também pelo escopo robusto da produção que chega a utilizar dezenas de lamborghinis durante a chegada triunfal de Aladeen em Nova York. Apostando em um roteiro tradicional e previsível, menos inclinado à espontaneidade de seu protagonista, as situações imaginadas não deixem a desejar, embora fossem potencialmente mais engraçadas se envolvessem pessoas comuns pegas desprevenidas, sobretudo nos dias atuais em que os déspotas estão sendo massacrados pela opinião pública mundial. Dessa forma, a cena que se passa durante um passeio de helicóptero é divertidíssima, mas certamente seria melhor se envolvesse turistas de verdade, ao invés de atores, deparados com possíveis terroristas árabes.
Escrito a oito mãos, a história acompanha a ida de Aladeen à Nova York para discursar na ONU acerca do programa de enriquecimento de urânio desenvolvido no seu país. Durante a sua estada, ele é traído por seu tio Tamir (Kingsley, em um papel que faria de olhos fechados), que arranca o símbolo do seu poder (a sua barba), o substitui por um sósia com QI de dois dígitos (não que o ditador seja o mais inteligente) e promete à comunidade internacional a confecção de uma constituição democrática. Irreconhecível, Aladeen conhece a hippie ativista Zoey (Faris) e reencontra Nadal (Mantzoukas), cientista conterrâneo que julgava ter mandado executar. Com a ajuda deles, o ditador tem só 5 dias para recuperar sua identidade e retomar o poder, mas seu plano é posto em risco depois que ele se apaixona pela garota.
Demasiadamente simplório e linear, o roteiro de O Ditador tem o mérito de não desvirtuar a personalidade moralmente comprometida do seu protagonista, como fizera Meu Malvado Favorito. Permanecendo praticamente o mesmo do início ao fim da narrativa, Aladeen até titubeia diante da possibilidade de ser um “cara legal” ou do inédito sentimento do amor, mas jamais se rende ao comum arco dramático redentor. Consigo imaginar, inclusive, que muitos cineastas adorariam lavar o sangue das mãos do ditador após a descoberta de que aqueles que ele mandou executar foram na verdade expatriados, recurso que felizmente não é utilizado para esse fim durante a narrativa. Mesmo porque, debaixo do humor, existe uma crítica bastante pertinente à ditadura conservadora e careta do politicamente correto que tem imperado na indústria de Hollywood.
Além de fazer humor envolvendo esteriótipos, sobretudo na forma preconceituosa com que os norte-americanos enxergam os árabes (Aladeen sequer é deste povo), onde na comédia contemporânea um personagem sugeriria jogar no lixo um recém nascido ou recomendaria um aborto só porque o bebê é do sexo feminino? E mesmo não tendo êxito em arrancar gargalhadas em algumas esquetes, a acidez do comediante basta para que seus esforços são sejam descartados, como na presença reveladora de Megan Fox e na insistência de pontuar os achismos da inútil comentarista de um programa de notícias. Demonstrando conhecer muito bem o gênero, o diretor Larry David é inteligente ao persistir nas piadas além do que a cartilha determina, extraindo o máximo de risos de cada uma, como ocorre com as sequências envolvendo uma cabeça decepada (ignorando, evidentemente, os efeitos da decomposição). Finalmente, o cineasta também é esperto em reaproveitar informações de cenas anteriores menos eficientes, pegando o público desprevenido ao revelar um hóspede no palácio ou o estranho hábito do embaixador chinês (com direito a uma ponta surpreendente).
Mas, O Ditador não funcionaria se não fosse o talento de Sacha Baron Cohen. Um dos melhores comediantes da atualidade, o inglês mostra-se incapaz de interpretar personagens “normais”, usando-os como vitrines para demonstrar a versatilidade de suas cuidadosas composições. Como Aladeen, ele soa ingenuamente fascinado com o poder que detém, o levando até mesmo a alterar verbetes do dicionário (a consequência disto é uma das melhores cenas do filme). Porém, tudo isso é fruto de carência emocional e um complexo de inferioridade compensados pelo egocentrismo estampado nos retratos pendurados por todos o palácio. Externando suas opiniões em hipérboles difíceis de serem levadas a sério, o inofensivo preconceito do ditador surge como parte indissociável da sua natureza, afastando-o do “humor” dos personagens criados por Adam Sandler, invariavelmente os mesmos, cujos xingamentos têm um único fim em si mesmo: troças dos outros.
Contando também com Anna Faris, cuja atuação sempre no volume mais alto é coerente com o ativismo de Zoey, O Ditador faz rir e ainda esfrega na cara da sociedade norte-americana as inúmeras atrocidades cometidas em nome da democracia. Ao que parece, o dedo em riste do almirante-general Aladeen sempre apontado para cima agora virou-se para o rosto do tio Sam e a sua velada hipocrisia. De novo!
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
3 comentários em “Crítica | O Ditador”
Li a crítica, mas só passei aqui pra falar que não ocorre crase antes de intelectual na descrição do seu perfil.
É isso aí falou há braços
Muito boa a sua análise. Mas acredito que se Cohen tivesse tentado de forma incógnita a cena do avião, como fazia nos outros filmes, poderia se meter realmente em encrenca.
A impressão que eu tive ao ver trailer do filme foi a de que o Cohen tinha se rendido aos padrões de Hollywoodianos de comédia, algo inofensivo e sem viés crítico de "Borat" e "Bruno". Pela sua crítica vi que isso não é de todo verdade, mas como eu já imaginava a popularidade que o ator já tem nos EUA acabou sendo um contra e não um pró… Espero poder ver em breve…
http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2012/08/vivendo-e-aprendendo.html