Deixando para outro momento os detalhes da conturbada amizade de Godard e Truffaut, os dois não poderiam ter dirigido filmes tão distintos como Viver a Vida e Jules e Jim – Uma Mulher para Dois. Apesar de apresentarem protagonistas enigmáticas sob o escrutínio de homens que não as compreendem, o estilo de filmagens e a disciplina dos mestres da nova onda divergem de tal maneira que a análise minuciosa dessas obras viria a esclarecer o rumo do cinema francês contemporâneo: o toque naturalista e minimamente intervencionista de Truffaut, que deixa o triângulo amoroso de Jules, Jim e Catherine fluir de forma leve e orgânica, versus a incontinência de Godard e as experimentações de ângulos, movimentos e a rígida linguagem que lhe permite aprisionar as emoções de sua protagonista, decidida a se tornar uma prostituta, em doze episódios apartados e complementares. Mais curioso ainda é que ambos os cineastas compartilham o diretor de fotografia, Raoul Coutard, hábil em se doar à visão contrastante de ambos os cineastas.
Em Jules e Jim – Uma Mulher para Dois, Truffaut introduz a amizade dos personagens título, um alemão pragmático e um francês boêmio, que estariam em lados opostos na primeira guerra mundial e dividiriam o afeto de Catherine, dona do mesmo sorriso sereno visto em uma obra de arte. Uma força da natureza, impulsiva de saltar no rio gelado após uma discussão e capaz de inspirar a paixão em muitos homens, com os quais ela não recusa dividir a cama, Catherine é a típica mulher da filmografia de Truffaut: forte, autêntica e amaldiçoada por seus instintos emocionais. Um gafanhoto prestes a saltar para onde o coração apontar e amaldiçoada a “nunca ser feliz na vida“, como Jules afirma; alguém orgulhosa por sua buliçosa trapaça e consciente do seu egoísmo, pedindo perdão antecipadamente a Deus pela traição que cometeria.
Acompanhando décadas de história através da narração in off, característica de outros de seus trabalhos, Truffaut privilegia Jules a Jim, desde o título do filme a uma conversa inusitada no táxi, porque reconhece a insegurança emocional do alemão a ponto de desconsiderar a ordem alfabética e sabe que o seu amigo não se importaria em ficar em segundo plano para protegê-lo. Dessa forma, o cineasta demonstra conhecer tão bem os seus personagens que não existe anormalidade sequer nos pedidos mais inapropriados e os freeze frames utilizados emolduram instantes singulares daquela tríada, como o semblante destacado de Catherine (uma interpretação monstruosa de Jeanne Moreau) ou o reencontro caloroso de Jules e Jim depois de alguns anos de guerra. Momentos capazes de maximizar a tragédia sentimental das grandes histórias de amor e devolver o espectador a um mundo mais racional, terreno fértil de Godard.
Confira também a resenha de Antônio Nahud Júnior sobre o mesmo filme.
No seu Viver a Vida, Godard explora um terreno que anos mais tarde Luis Buñuel dialogaria com mais propriedade em A Bela da Tarde: a decisão de abandonar uma vida socialmente mais aceitável e digna para entregar-se à prostituição. Há diferenças fundamentais entre os filmes citados e, enquanto a protagonista de Buñuel é uma mulher rica de classe média-alta que encontra na profissão mais antiga a solução para a sua frigidez, a Nana de Godard é uma mulher pobre e buscando uma felicidade que ela sequer sabe se existe. Sonhando em ser atriz de cinema, ainda que as menções de que “esteve em um filme com Eddie Constantine” pareçam mais uma tentativa de se iludir do que provar seu talento artístico, Nana enxerga-se no ícone de Joana D’Arc e o destino inafastável nas mãos de impiedosos homens. Inspirando-se em um encontro surreal na cafeteria, onde aprende sobre o silêncio ascético para ser feliz, a moça revela-se uma personagem conflituosa, incapaz de encarar sentimentos e decepções.
A abordagem de Godard é curiosa, analítica e intrusiva; a sua câmera esgueira-se de um lado a outro a fim de desvendar o mistério interior da protagonista, além de construir regras desde o primeiro quadro, um retrato falado aberto a interpretações ou uma mulher encarando passado, presente e futuro. Este é o Godard revolucionário, dono de uma mise-en-scène impecável que fluía entre a pormenorização do significado da linguagem (vê-la de costas em um café terminando o seu relacionamento e sem jamais revelar o rosto é um indicativo de vergonha) e o seu pedantismo característico incutido na gratuidade de algumas decisões e o desapego à estética (o plano de fundo estático no restaurante). Contudo, pulsando frescor e jovialidade, Godard demonstra inteligência ao legendar um diálogo e reproduzir em alto e bom som os pensamentos de personagens certo momento, justificando o encontro filosófico já citado, além de ser carinhoso com o até então amigo Truffaut ao apresentar o letreiro de um cinema que destaca Jules e Jim.
E chegamos a Sempre aos Domingos…
Em seu roteiro, Pierre (Hardy Krüger) tem uma vida perdida: sofrendo de amnésia parcial e estresse pós-traumático depois de matar uma garotinha na guerra do Vietnã, o ex-soldado arrasta-se pelas esquinas da cidadezinha de Avray com uma postura anestesiada e um olhar catatônico. Sua namorada Madeleine (Nicole Courcel), a enfermeira que cuidou dele na guerra, tenta resgatá-lo daquele invólucro adoecido, mas seus esforços caem na sua recusa de simplesmente tentar. Até que um dia, em uma de suas muitas idas ao metrô, Pierre depara-se com uma cena devastadora: um pai abandonando a sua filha no convento local sob as falsas promessas de que iria visitá-la aos domingos. Impelido a remendar o passado ou a sacrificar-se por este, mesmo que não compreenda exatamente porque, Pierre assume o papel de pai de Françoise (Patricia Gozzi) e a busca aos domingos para passear e brincar, o que evidentemente não é bem visto pelos habitantes.
Dirigido por Serge Bourguignon (seu longa de estreia de uma curta filmografia de só 7 filmes), a narrativa mistura ingenuidade com insinuações maliciosas. Se a aproximação de Pierre e Françoise (como as freiras a chamam) surge naturalmente – ele enxerga nela a garotinha que matara e ela busca reparar a solidão do abandono e fugir do tédio do orfanato -, a evolução deste relacionamento é inapropriada aos olhos de terceiros: em uma conversa, Françoise calcula que quando completar 18 anos, Pierre terá 36 e eles poderão se casar; noutro momento, Pierre sente ciúmes de um jovem e o esbofeteia. De forma inteligente, Bourguignon não abraça a pedofilia (como Kubrick o fizera em Lolita) e a meninez de Françoise e o fascínio sincero de Pierre advogam contra a desconfiança dos demais habitantes (e dos espectadores).
Belissimamente fotografado por Henri Decaë, a bucólica paisagem que serve de lar para Pierre e Françoise ganha vida em planos refletidos nas ondas do lago e na contemplação de um futuro feliz, embaçado pontualmente como na vista da janela durante o almoço de Pierre, Madeleine e seus amigos no domingo que ele prometera estar com Françoise. Já o nome de batismo da garota, Cybèle (a deidade das árvores e mares), ajuda a construir uma bela rima entre a vertigem de Pierre ao encarar árvores e água, o ensinamento tibetano de desapego e reflexão e a salvação materializada naquela estranha amizade.
Interpretando Pierre com um absentismo torturante, Hardy Krüger (uma espécie de Daniel Craig alemão) tem uma atuação minimalista impressionante que contrasta com a vivacidade e amabilidade da jovem Patricia Gozzi, enquanto Nicole Courcel comove com a dedicação ímpar e incorruptível a Pierre.
Com um desfecho doloroso e poético, Sempre aos Domingos não tem um maestro do renome de Truffaut ou Godard, mas a combinação da sensibilidade do primeiro e a frieza do segundo resultou em uma obra devastadora e apaixonante.
Este artigo integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, 007 Contra o Satânico Dr. No.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “França em 1962: A Nouvelle Vague e o Oscar”
Texto instigante, parabéns!