Com um limitado número de pontos, linhas e formas, Kandinsky expressava a sua arte abstrata tendo integrado a prestigiada escola Bauhaus, onde estudou Munio Weinraub, pai do cineasta Amos Gitai e homenageado neste documentário Canção para o meu Pai. Mas se a arte nasce até nos terrenos mais inférteis com a combinação de escasso número de elementos, o mesmo não costuma acontecer em biografias em que o sujeito precisa ser bem delineado para ser aproximado do espectador. Não importa, portanto, as melhores intenções e afetividade do diretor se ele não transmite ao espectador quem é de fato aquele homem.
Representado por uma cadeira vazia durante a encenação de seu julgamento na Alemanha, um símbolo ironicamente apropriado ao projeto, Munio Weinraub foi um arquiteto judeu perseguido pelo governo nazista e forçado ao exílio para salvar a sua vida. Porém em que isso o diferencia de outros artistas que sofreram atrocidades iguais ou piores? Tateando esta pergunta ao mencionar a contribuição de seu pai à arquitetura, Gitai prefere ser uma Wikipédia audiovisual narrando, cronologicamente, a trajetória de Munio através de simbólicas visitas ao passado, representações de situações marcantes usando atores e álbuns de fotos. Estas, descontextualizadas e literalmente jogadas na tela, em nada acrescentam à narrativa tendo significado só para os familiares.
O que também acontece com este documentário; sensível, é verdade, mas ressentindo a ausência do biografado, sentado na cadeira vazia sob as luzes da câmera.
47) La demora (Idem, Uruguai/México/Espanha, 2012) – Direção: Rodrigo Plá.
María é uma trabalhadora assalariada de meia-idade, mãe de três filhos que dividem o único banheiro na casa e se amontoam dentro de um quarto em um apartamento espremido da periferia de Montevidéu. Pobre, falta-lhe dinheiro para o táxi, María ainda cuida do pai Agustin, um homem tenro e bondoso, mas que sofre os primeiros sintomas do mal de Azheimer. Ela até tenta recorrer à irmã, mas diante de seu negativa e da exaustão e incapacidade financeira de manter o pai, decide interná-lo em um asilo financiado pelo governo, também sem sucesso. Sem encontrar outra solução, ela monstruosamente abandona o pai em uma praça durante uma fria noite outonal, na esperança de que um abrigo vá recolhê-lo.
A espera do título original nada mais é, portanto, do que a longa noite que Agustin passará ao léu aguardando o retorno de María, consumida em remorso e arrependimento enquanto tenta disfarçar o ocorrido para os filhos. Montado de maneira simples na alternância entre as duas linhas narrativas, Rodrigo Plá evita estigmatizar María como sendo um monstro, apesar da sua ação impensada forçar o espectador a enveredar por este caminho. Também se sente desprezo pela mulher graças ao contraste provocado pela compaixão por Agustin, a frágil, mas esperançosa vítima que acredita piamente que algo aconteceu com sua filha ou seus netos para justificar a espera.
Assim, mesmo o esforço do diretor em humanizar María através da atenção e preocupação dispensadas ao pai ou de um sorriso despretensiosamente afetivo enquanto recorda bons momentos junto das fundas olheiras de Roxana Blanco e a sua ótima atuação minimalista não bastam para apagar a mancha criada sobre essa improvável vilã. Algo reservado para uma covarde reconciliação que funciona só para uma das partes.
Contando com uma fotografia crua e acinzentada adequada à depressiva realidade em que vivem os personagens , o representante uruguaio no Oscar de 2013 é um retrato enxuto e aflitivo da responsabilidade dos filhos para com seus pais idosos. Pode até ajudar a refletir, provocar revolta e emocionar, mas lhe falta coragem para ser marcante.
48) Après mai (Idem, França, 2012) – Direção: Olivier Assayas.
Custo imaginar que o mesmo cineasta que transformou a trajetória de Carlos, o Chacal em uma das obras mais impressionantes da década com suas mais de 5 horas de duração, fez esta bobagem pseudo-revolucionária e panfletária que atira para todos os lados e mal consegue decidir se é socialista democrata de esquerda ou reacionário direitista. Ambientado em 1971 durante os conflitos entre os politizados estudantes e a polícia, Assayas é bem-sucedido na reconstrução de uma época inspirada pela revolução sexual apregoada pelo rock `n roll (daí a trilha sonora estar cheia de clássicos do gênero). Ademais, a fotografia sépia de Eric Gautier, colaborador habitual de Walter Salles, evoca a nostalgia do período de forma acertada.
Mas param aí os elogios! Justificando com clichês existencialistas toda a crítica pejorativa que fazem do cinema francês, Assayas recorre a personagens aborrecidos, vazios e pseudo-“qualquer coisa” que, apesar de terem lido o Manifesto do Partido Comunista, um tratado sobre a Revolução Cultural chinesa e livros de George Orwell, mostram-se incapazes de formular as próprias opiniões e exibem frequentes sinais de alienação. É o que se consegue quando seus personagens são jovens membros da pequena burguesia insatisfeitos com os problemas da classe operária, sabe-se lá o porquê, e que estão em viagem ao redor da Europa, usam drogas, transam e praticam o naturalismo.
Melhor exemplo disto é o protagonista Gilles, um jovem artista talentoso que resolve queimar o próprio trabalho (repito: ele queima uma obra de arte!) porque quer que a antiga paixão seja a única pessoa a vê-lo (um fofo). Antes de pensar o que seria da humanidade se Leonardo Da Vinci queimasse a Monalisa ou se Rodin destruísse o seu Pensador, Gilles é um rapazinho tão antipático que seus questionamentos sobre o amor e a briga imatura com o pai o tornam um Louis Garrel piorado só rivalizado por Laure, uma daquelas personagens que não sabe bem o que quer da vida até ser engalfinhada em labaredas de fogo. O motivo: os ricos participantes de uma festa que não tinham nada melhor para fazer senão atear fogo.
Falhando em achar o foco da narrativa, Assayas nem elabora um estudo de personagem, já que está mais preocupado em introduzir coadjuvantes ao rodo com os seus próprios problemas, nem tampouco uma obra panfletária, tendo inclusive instantes em que não sabe se é pró ou contra a revolução. Ele também não produz um manifesto artístico, pois mesmo presente de uma forma ou de outra na vida dos personagens, a arte acaba inócua no seu aspecto crítico (a não ser que você engula o cinema revolucionário apresentado discretamente como crítica social).
Pensando bem, Olivier Assayas atingiu com Après Mai o exato oposto do que realizara com Carlos: se neste, partindo do protagonista, ele criou um panorama intrincado do terrorismo e de suas consequências sociais; naquele, mesmo através dos múltiplos personagens, ele sequer conseguiu costurar a sua história ligeiramente simples que, no final das contas, é sobre um bando de adolescente inseguros ansiando para não ser igual aos pais.
Duvido muito, porém, que Assayas tenha pensado nisso em algum momento.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.