Com apenas dois filmes, Xavier Dolan adquiriu a reputação de ser um cineasta de olhar ímpar para composições, mas entregue a muitos vícios e excessos. Se estes funcionaram bem em Eu matei a minha mãe, seu primeiro filme, em Amores Imaginários, o trabalho seguinte, a repetitividade e abundância de histrionismos prejudicava o que poderia ser um interessante triângulo amoroso. Laurence Anyways vem, portanto, ser um retrato do amadurecimento do cineasta sem abandonar o seu jeito descontraído e jovial, mas o usando em prol da narrativa, ao menos na maioria das vezes.
O roteiro também escrito por Dolan acompanha uma década no relacionamento de Laurence (Melvil Poupaud), um premiado professor de literatura, e da expansiva e efusiva Fred (Suzanne Clément), período em que ele decidiu passar por uma metamorfose e abraçar o seu lado feminino vestindo-se de mulher. A decisão é um choque não somente para Fred, cuja geração parecia estar preparada a aceitar a individualidade, como também para a mãe de Laurence (Nathalie Baye), que encontra na transformação do filho a chance para alterar o rumo de sua vida e do casamento falido. Além disso, uma mudança tão radical assim não viria livre das consequências: primeiro o emprego; depois, o relacionamento com Fred.
Nessa busca universal de se aceitar como verdadeiramente se é e conquistar um amor impossível, Xavier Dolan, acumulando ainda a função de montador e figurinista, repete a mesma coisa que condenou na obra de Proust: a auto-indulgência. Precisando de quase 3 horas para contar uma história particularmente simples e linear, Xavier quase chega a cometer o mesmo erro do seu longa passado na repetição de olhares lançados por onde quer que Laurence passe e no uso gratuito da câmera lenta, closes e baladas disco da década de 90.
Mas não demora muito até o jovem diretor por a cabeça no lugar e usar a sua visão em desenvolver uma obra apaixonante. Através de belos símbolos, como o da borboleta que brota da boca de Laurence para devolver a liberdade ao seu eu interior e a destruição da televisão representando a quebra do comodismo, Xavier ainda demonstra inteligência ao reintroduzir elementos anteriormente vistos para aproximar Laurence e Fred. Assim, o ato de despejar o cesto de roupas sobre o outro tem o mesmo significado em momentos distintos; o mesmo ocorre com o plano-detalhe de um abajur que acaba servindo de luz e elo nostálgico do casal.
Competente no uso das cores para evocar sensações diversas, o azul assume tanto o tom da liberdade quanto da depressão, e com uma direção de arte soberba que contrasta a imponência, assepsia e impessoalidade de uma mansão com o caloroso interior de um apertado apartamento, Laurence Anyways é um filme apaixonante que devolve o talento do seu jovem diretor no trilho certo.
15) Hélio Oiticica (Idem, Brasil, 2012) – Direção: César Oiticica Filho.
Como documentar a vida de alguém que não vive de acordo com as regras convencionais, mas através de uma anarquia pessoal capaz de acomodar a sua genialidade subversiva? Como dissecar a figura de um mito das artes e com apenas 90 minutos apresentar a sua parcela de participação em propor uma dialética inacabada e renovável das artes? A única resposta que me vem à cabeça é: não existe como, ao menos não no formato a que estamos habituados. Dessa forma, Hélio Oiticica, vencedor do prêmio de melhor documentário no Festival do Rio, é mais uma biografia reducionista, mas não menos curiosa, do que um retrato honesto, conforme o estado de invenção prenunciado pelo biografado.
Através da narração in off do próprio Hélio, obtida com base em uma generosa pesquisa de arquivos, o biografado descreve a si e a suas aventuras nas suas próprias palavas, o que as vezes soa radical e ofensivo, ou mesmo divertidamente arrogante (“eu me achava o mais inteligente; e era”). Criticando severamente a arte tradicional, afirmando estar a pintura e a escultura ultrapassadas, Hélio propôs um novo conceito artístico penetrável que admitisse a reinterpretação da obra a todo momento criando ainda o parangolé, a vestimenta cuja forma, textura e cor traduzem uma espécie de arte em movimento.
Evitando moralismos que não combinavam com a sua personalidade, Hélio recorda a sua viagem a Nova York regada a cocaína e orgias e abraça uma condição contraditória de aclamado e repudiado, amado e odiado. Não deixa de ser, portanto, uma pena que alguém inusitado e subversivo como Hélio foi receba um tratamento revolucionário somente na superfície, sendo na verdade tão careta e ordinário quanto um outro artista mais puro seria.
16) Imperdoável (Impardonables, França/Itália, 2011) – Direção: André Téchiné.
Não deixa de ser decepcionante quando um diretor com relativo prestígio apresenta uma obra banal que poderia ter saída das mãos de cineastas com bem menos personalidade. É exatamente isso que acontece com esse fraco Imperdoável, adaptação de um livro escrito por Philippe Djian e cujo único mérito é ser só um filme bonito de se ver. E olhe que nem isso é mérito exclusivo da produção, devendo enormemente as locações nos arredores de Veneza.
Na história, o escritor Francis (André Dussollier, normalmente confiável mas perdido no personagem ciumento, possessivo e fragilizado) está à procura de uma casa isolada para iniciar o seu novo livro e acaba conhecendo a agente imobiliária Judith (Carole Bouquet), uma ex-modelo e adepta ao sexo livro, com quem acaba casando. Durante uma visita da família ao reduto de Francis, a sua filha Alice (Mélanie Thierry), casada, misteriosamente some, levando-o a contratar a detetive Anna Maria (Adriana Asti) para descobrir o paradeiro da moça. Anna, por sua vez, é mãe de Jérémie (Mauro Conte), um jovem problemático recém-saído da prisão por espancar um homossexual. Finalmente, em algum momento, Francis contrata Jérémie para espionar Judith, imaginando estar sendo traído.
Com personagens repletos de manchas no passado e que não parecem inclinados a tomar nenhuma ação altruísta para com o próximo, a direção de André Téchiné é extremamente monótona na abordagem movida a diálogos puros que não parecem encaminhar a história adiante mas só expor sentimentos introjectados e reprimidos. Também não há um drama central relevante e o desaparecimento de Alice é resolvido em poucos minutos dando espaço a uma história absurda de confrontação da figura paterna (através de uma reprovável gravação pornográfico). Da mesma maneira, as traições, amorosas ou não, chovem no molhado e nem refletem honestamente o agir que se esperaria de alguém na situação.
Para piorar, a duração de quase 2 horas mais parece prolongar-se pelo dobro do tempo em um esforço fraco e imperdoável de Téchiné.
17) Barbara (Idem, Alemanha, 2012) – Direção: Christian Petzold.
Representante alemão no Oscar de 2013 e papa-prêmios no seu país, tendo sido indicado ao urso de ouro do festival de Berlim, Barbara serviu para mim como indutor de sono, principalmente porque a personagem-título é dona de uma apatia digna do apelido Lexotan. Antes, porém, de revelar-se aborrecidíssimo, o roteiro acerta na ambientação em um Alemanha dividida em duas, deslocando a ação a uma pequenina cidade do interior onde Barbara (Nina Hoss) é a médica recém-contratada. No hospital, ela conhece André (Ronald Zehrfeld), o pacato e bondoso chefe da equipe, e que se apaixona por ela em tempo recorde.
Em matéria de narrativa, não há nada errado com a trajetória de Barbara do isolamento frio e introspectivo a um relance de auto-sacrifício. Mas para sair do ponto A para o ponto B, a direção de Christian Petzold não faz o menor esforço para aproximar-se da protagonista, mantendo-a em um distância segura que não permite conhecer melhor o que ela tem dentro de si. Médica atenciosa, isto está claro, que pode ter perdido os mais próximos a ponto de levá-la a enjaular seus sentimentos, ou é o que supus, Barbara só consegue extravasar suas emoções diante do piano.
Se estou formulando essas suposições é porque quero ao menos ter um ponto de partida para compreender uma personagem que não se abre, tarefa que torna-se mais difícil no momento em que Petzold investe com vontade no romance recalcado e tímido entre ela e André. Sobretudo porque, além do fato de Barbara ser um livro fechado, André é o cara mais unidimensional que poderia ser: macho-alfa protetor, só resta a ele pedir para tomar conta da protagonista, o que faz a todo instante com o olhar.
Do convite para ir ver o mar (clichê) e a intromissão, ou gentileza, de contratar um técnico musical para afinar o piano da casa da amada, André é o elemento emocional da balança, mas de tão mal desenvolvido, é incapaz de convencer o espectador daquilo que o atraiu a uma paixão quase obsessiva por Barbara.
Sem âncora e totalmente frio, Barbara rebate todos aqueles que dizem que só brasileiros não sabem escolher seus representantes ao Oscar.
18) Padak (Pa-dak pa-dak, Coreia do Sul, 2012) – Direção: Dae-hee Lee.
Anteontem ao comentar Barbie aqui, eu afirmei que nem mesmo com personagens infantis o cinema sul-coreano consegue superar a monstruosidade retratadas nas suas narrativas. Padak ratifica a afirmação e acrescenta ao argumento uma animação cruel e impiedosa. Basicamente, a história bebe da subtrama envolvendo o aquário do dentista em Procurando Nemo e a tentativa desesperada de Nemo e os outros peixes fugirem de lá antes que o pior aconteça. Essa referência ainda é explicitamente reafirmada pelo diretor Dae-hee Lee na sequência envolvendo peixes palhaço… devorados, como prega a cartilha do cinema daquele país.
Transportando a narrativa para uma região pesqueira, o Cavala apelidado de Padak é capturado do oceano e enviado para ser uma iguaria na mesa de jantar. Junto a outros peixes que evitam o dia do abate fingindo-se de mortos, o peixe protagonista planeja fugir do cativeiro, mas encontra forte resistência vindo de um Linguado calejado com um trauma no passado (pausa para risos… nunca escrevi uma sinopse assim, entendam). Estimulado por um peixe Malhado criado em cativeiro e que sonha em conhecer o oceano, o Cavala planeja uma fuga ousada envolvendo caranguejos da neve (suspiros).
Contando um trágico conto de sobrevivência e investindo pesadamente na crueldade para retratar o perigo que aguarda os peixes, Dae-hee Lee investe na perturbadora imagem de um peixe ainda vivo sendo devorado aos poucos por homens enquanto implora socorro desesperadamente. O olhar doentio e violento do cineasta não poupa peixes bondosos e simpáticos de serem trucidados e o ritual praticados pelos peixeiros antes de matar suas vítimas.
E da mesma forma que é incômodo testemunhar as atrocidades retratadas pelo cineasta, também o é escutar interlúdios musicais desnecessários que parecem buscar uma doçura inexistente na história. Ou forçar os personagens a agir de maneira engraçadinha ou bonitinha quando a narrativa achar conveniente, como a Parca gorda e preguiçosa ou a Enguia que adora brincar de adivinhações. A mudança constante no tom, bem mais do que a inspiração do clássico da Pixar, é o que condena essa cruel animação sul-coreana.
19) Lado a Lado (Side by Side, Estados Unidos, 2012) – Direção: Christopher Kenneally.
Na tentativa de elucidar a evolução da tecnologia digital e os seus muitos tentáculos na indústria cinematográfica, o documentarista Christopher Kenneally terminou criando um filme fetiche para todo amante da sétima arte aprender sobre o processo histórico da película, os prós e contras do digital nos diversos momentos da criação do cinema e, de quebra, conferir a opinião dos participantes: diretores, montadores, diretores de fotografia, coloristas, etc. Ele fez tudo isso a partir de uma pergunta simples: a invasão do digital representa a morte da película?
Para subsidiar uma resposta integral dessa pergunta, Christopher investiga desde a captação da imagem no set de filmagens, à manipulação nas salas de edição, efeitos especiais e colorização, à distribuição e ao arquivamento da obra audiovisual para décadas futuras. Claro defensor da mídia digital, Christopher revela mais prós do que contras na utilização do formato pelos cineastas, embora não descarte a preservação simultânea, mas reduzida da película. Homens como Steven Soderbergh, Martin Scorsese, Robert Rodriguez (que, pasmem, é um entrevistado culto e pertinente, algo que nunca se imaginaria assistindo a seus filmes) e, claro, James Cameron e George Lucas além dos respectivos diretores de fotografia incentivam o uso de digital, enquanto só Christopher Nolan parece advogar em prol da película.
Não é uma questão de parcialidade de Christopher (o que nunca também foi defeito em documentário), e sim a tendência. Mas ela nem sempre foi assim, algo que a narrativa deixa claro ao apresentar os primeiros formatos digitais de baixa resolução e frisar o constrangimento de quem assistia àquelas produções supostamente amadoras, sendo superada essa limitação anos depois com a chegada do movimento Dogma 95 que abraçou sem ressalvas o digital. A própria tecnologia avançou rumo à superação de limites na resolução, no peso do equipamento e na facilidade de seu uso, sendo um filhotinho se comparado com a película que há anos atingiu definitivamente um patamar do qual não mais sairá.
Demonstrando a praticidade do formato, o documentarista mostra como ele facilitou a vida de diretores que não precisam esperar as cópias diárias, tal como idealizadas pelos magos da direção de fotografia, para saber como está o andamento das filmagens, tendo à disposição para consulta imediatamente o disco rígido da câmera digital. A pós-produção é outra que se beneficiou e quebrou barreiras com o advento do digital, criando um processo mais simples e eficiente do praticado por antigos profissionais que cortavam e colavam películas durante a montagem, criavam modelos para os efeitos especiais ou controlavam só o brilho e as cores primárias na colorização.
Além disso, o baixo custo do digital proporcionou orçamentos menores e o surgimento de diretores cuja carreira poderia nunca encontrar um projeto adequado (e mais caro) em película. Mais ainda, deu-lhes liberdades que antes não tinham, já que o projeto era mais barato e precisa de menor rentabilidade. Porém, Christopher também aponta que a democratização e acessibilidade do formato proporcionam o surgimento de mais filmes ruins do que bons, aproximando o cinema da literatura e a câmera do papel e lápis.
Poderia alongar-me mais sobre os méritos do documentário que inclue ainda a política de distribuição streaming, como Netflix, e a consequente redução de espectadores nas salas de cinema, a avassaladora moda do 3D, e outros elementos que cinéfilos irão se apaixonar e quem não conhece cinema, bem, vai começar a vê-lo com novos olhos.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.