A partir dele, e por tabela do seu parceiro, Marcados para Morrer faz um ótimo trabalho em retratar positivamente o imprescindível trabalho policial. Nesse recorte da realidade, o mundo criminal assume apenas os tons preto e branco em que policiais caçam bandidos e zelam pelo bem-estar social. Não há o fantasma da corrupção e nem o chefe da repartição está em conluio com alguma gangue de traficantes; todos ali são bons e honestos trabalhadores, e mesmo que alguns revelem um jeitão embrutecido após anos de trabalho (o caso de Van Hauser) ou exagerada imaturidade (Taylor), poderíamos confiar cegamente que eles realizariam seu trabalho da melhor forma. Evitando parecer panfletário, a narrativa de David Ayer, especialista no gênero policial – tendo escrito S.W.A.T. e Dia de Treinamento e dirigido Os Reis da Rua -, foca-se mais nas pessoas do que nas missões e é bem sucedido na abordagem quase documental empregada.
Com uma estrutura bastante similar à de Polissia, a narrativa explora tanto a vida particular dos patrulheiros, e os relacionamentos amorosos e familiares revelam mulheres conscientes do risco apresentado pelo trabalho policial e receosas de que o seu medo maior venha se concretizar algum dia, quanto aquilo com que Taylor e Zavala se deparam na ronda diária, e nunca existe um dia igual ao outro. As vezes chamados para prender um traficante que perturbava a paz da vizinhança, noutras para auxiliar um colega em dificuldade, a dupla encara situações corriqueiras, inusitadas (a briga consensual entre Zavala e um bandido) e chocantes (uma em particular impressiona pela intensidade gráfica), além de lidar com a frustração de não poder explorar o trabalho investigativo, tarefa incumbida a detetives.
Essa abordagem acerta ao cumprir a dupla função de documentar aspectos procedimentais inerentes ao serviço – repare a coordenação entre viaturas, helicóptero e a central policial – e de humanizar aqueles na ponta que registram a ação em seu aspecto mais cru e brutal. Funcionando inclusive como bom exemplar do subgênero buddy cop, a narrativa recorre ao carisma e jovialidade de Jake Gyllenhaal e à responsabilidade descontraída de Michel Peña para estabelecer a fundamental química entre a dupla, e vê-los crescer diante de nossos olhos à medida em que enxergam a verdadeira dimensão da maldade humana é um dos muitos prazeres proporcionados pela narrativa. Revelando, ainda, a camaradagem existente dentro do precinto policial, com direito à brincadeira da espuma de barbear, a narrativa torna imprescindível o regresso dos patrulheiros ao lar, testando o envolvimento do espectador à prova durante o impactante clímax.
Mas nem tudo funciona muito bem, e o roteiro escrito também por David Ayer introduz um caso principal descartável que busca conferir um fechamento à história, apesar de somente ferir a lógica visual da narrativa. Assim, se já não bastasse Taylor e o seu hábito de cineasta, recorrendo até a câmeras afixadas no bolso do uniforme, há ainda a gangue hispânica que documenta o planejamento e cometimento dos crimes, culminando em uma sequência passada na fronteira mexicana que, usando a visão noturna, registra uma ordem do chefe de um cartel de drogas. E embora esta fizesse sentido caso a narrativa fosse convencional, não deixa de intrigar a falta de uniformidade entre as histórias, levando-me a perguntar quem filmou aquela ordem (dentro, repito, da lógica documental da narrativa). Ademais, ao ouvir o chefe da já citada gangue gritando para desligar a câmera, é difícil não torcer o nariz uma vez que naquele momento ninguém estava com a câmera em mãos.
Abusando do uso da câmera subjetiva – infelizmente, um mal necessário -, que acaba provocando imagens tremidas e as vezes poluídas, de cortes secos e de uma fotografia suja cheia de flares, mas adequada à proposta narrativa, Marcados para Morrer é um bem-vindo chacoalhar no gênero policial com dois ótimos atores e uma abordagem visceral e incisiva como não se via há um bom tempo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.